A ESTANTE DO PORTEIRO
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CONVERSA COM RUI ZINK

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Fotografia de Rafael Zink

Rui Zink (RZ) é professor e escritor. A conversa que se segue resulta de um generoso contributo que deu à Estante do Porteiro (EP).
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EP: Como lidar com o sofrimento do outro? Onde está o ponto de equilíbrio entre a empatia e a preservação do ego?
RZ: A empatia é talvez o melhor da humanidade: a capacidade de nos pormos no lugar do outro, de entendermos num misto de pensamento e emoção o lugar e o ponto de vista tanto dos nossos próximos como dos distantes – e até dos nossos inimigos. É o maior combustível para a paz, o amor, a amizade, a fé – até para uma boa cama. É uma energia boa que, como todas as energias, em excesso pode acabar por ser mais nociva que benéfica, como a água que nos dá vida mas, em certas ocasiões, pode ser uma força destruidora. Há, sobretudo nos jovens de esquerda, uma sobredose de empatia que pode virar perigosa: o amor total e absoluto e indiferenciado «a toda a Humanidade», com agá maiúsculo. Todas as vidas valem o mesmo, mas para um pai a vida do seu filho vale mais que a dos outros – e isto não é egoísmo, é essencial para calibrar a generosidade. Os que não distinguem acabam não a fazer bem a a toda a Humanidade, mas a desprezar o mal feito aos próximos. Lembro, com arrepios, o que uma moça escreveu no Facebook, a propósito da morte de duas crianças num acidente em Portugal: «O que me importa a vida de duas crianças em Braga, quando há milhares a morrerem no Sudão?» Ainda estou arrepiado. 
  

EP: Uma decisão é independente da certeza e do consenso? Uma decisão é sempre racional? Ou não?
RZ: Uma decisão nunca é racional. Mas, num humano, também nunca nunca é racional.


EP: Depois da extensão, da substituição e da actualização qual a fase seguinte da tecnologia e do nosso futuro? Qual o horizonte de evolução para o” Sapiens” ?
RZ: Boa pergunta. É um assunto para o qual não tenho resposta – e tenho medo dos que têm resposta. A nossa identidade é sermos fluídos, somos a espécie que melhor evoluiu e mais se adaptou a todos os desafios colocados, tanto quanto sei. A nossa fraqueza sempre foi o nosso forte: ao contrário dos outros seres vivos, usamos elementos exteriores para ganharmos poderes. Tiramos e pomos roupa consoante está calor ou frio. Usamos bilhas de oxigénio e palminhas para fazer mergulho e asas de tecido para fazer asa-delta. E até inventamos computadores mais inteligentes que nós para gerirem a nossa economia e nos vencerem ao xadrez. O problema é que tantas vezes o cântaro vai à fonte que… Mas sou optimista: no futuro, será humano quem se considerar humano e tiver outros humanos a reconhecer que é humano. 


EP: A Invisibilidade promovida pela tecnologia desresponsabiliza os seus usuários ? Este comportamento pode ser considerado um tique fascista?
RZ: Não iria por aí. Todos nós somos melhores e piores do que nos julgamos. O cobarde é capaz de, um dia, ter gesto de heroísmo. Esta é uma questão ética que vem de longe: como ser decente quando ninguém está a ver? Denúncias anónimas sempre houve. O fascismo é, entre outras coisas, apenas um nome mais para os nossos impulsos mais rasteiros e predatórios.
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EP: A ruína é um intermediário da arte? O que foi belo agora é feio?
RZ: A ruína foi, para os românticos, o encontro entre a natura e a cultura, entre o natural e o humano. Um castelo em ruínas é ao mesmo tempo uma derrota da técnica, uma revanche da natureza e uma vitória para a arte: em ruínas, o castelo já não serve para nada (já não impede os inimigos de entrar) e então, ao olhar humano, vira a suprema arte, uma espécie de cópula perfeita entre a vontade humana e a mãe natureza.


EP: De que forma a linguagem influencia o poder e vice-versa?
RZ: Quem toma o poder quer sempre ter o controlo da linguagem. Há toda uma literatura sobre o assunto. A mim interessa-me muito, e escrevi sobre isso n’A Instalação do Medo’ (2012) e noutros livros, mas já antes Maquiavel, Swift, Orwell, Barthes e tantos outros tinham abordado o assunto. Repare na linguagem de guerra: ‘terrorista’, ‘cobardes’, ‘monstros’ são sempre os outros. Nós, quando obtemos os mesmos resultados, fomos sempre ‘justos’, ‘inteligentes’ e ‘humanos’. Se eles vitimam civis é a prova da sua crueldade; os civis mortos por ‘nós’ são só ‘danos colaterais’. E hoje todo o discurso em sociedade é de guerra permanente (como preconizou Orwell), publicitário, propagandístico, evangelizador. Daí que, para mim, o trabalho do artista já não seja só fazer ‘belos textos’ mas também o desmontar da máquina retórica que paulatinamente nos tritura.  


EP: Qual o papel do amor e do desejo na formação de identidade?
RZ: Para mim, todo. Esta é a resposta seca. Agora vou desenvolvê-la um pouco: nem toda a gente tem noção do que um amor bem-sucedido no início da juventude tem sobre as sinapses e a saúde e a inteligência e a viagem de corpo e mente até ao momento em que (sabemo-lo desde que nascemos) seremos desligados. Se esse amor conjugar as felicidades espiritual e física, maravilha. Mas nem sempre isso acontece. Convém no entanto que os jovens tenham maravilhosas experiências de enamoramento e coito (mesmo que não com a mesma pessoa), a fim de partirem fortalecidos e com optimismo para um futuro e lidem, quando a ficha lhes cair em cima, o melhor possível com as inevitáveis frustrações e dissabores que a vida inevitavelmente nos traz. Um/a jovem que tenha tido um amor feliz (e coitos supimpas) lidará menos mal quando descobrir que o marido/a esposa anda há um ano a passear por fora.   
​

EP: Muito Obrigado, Rui.
R: O prazer foi meu.
 
 

CONVERSA COM YVETTE CENTENO

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Foto de Luísa Ferreira
Yvette Centeno (YC) é professora, poeta, romancista e ensaísta. A conversa que se segue resulta de um generoso contributo que deu à Estante do Porteiro (EP).

EP: As formas do infinitamente pequeno, por vezes, coincidem com as do infinitamente grande. Existem padrões universais? Será possível encontrar uma linguagem comum que una todas as forças e energias?
YC: Essa é pergunta para um Hawking, não para poetas...Mas eu diria a criação artística.

EP: O inconsciente é uma “lava incandescente”. É fácil para si encontrar os moldes ou as visões para representar esta nossa inquietante estranheza de ser? Existe um fluxo de (in)consciência quando trabalha enquanto criadora?
YC: Não quando trabalho, mas quando tenho algum sonho que gosto de interpretar. Trabalhar, no sentido da pergunta, já é fase diferente, de depuração da matéria criada. Um solve et coagula, dos alquimistas.

EP: Um criador livre é um criador marginalizado? Precisamos de mais pimenta e menos sal? Mais Albertos, Mais Viegas, etc? Que conformismo é este que a “manada intelectual” promove num viciado jogo de imitação e validação?
YC: É marketing, em tempos de aceleração. Mas um criador nunca é livre, é prisioneiro de si mesmo, da sua arte...

EP: As ciências sociais constroem modelos para compreender o humano. O primitivo e o ancestral nem sempre são equacionados. Acha que o homem tem medo de se confrontar com aquilo que ainda é ou aceitar o que sempre foi?
YC: Não precisa de ser medo, basta que seja ignorância. Conhece-te a ti mesmo continua a ser busca fundamental.

EP:  Qual o papel da filosofia na sociedade da imagem e do "autocentramento"?
YC: A filosofia é estruturante do pensamento. Melhor, só a matemática, de que todos ou quase fogem.

EP: A música( em especial o Jazz e a arte, em geral) é o que nos dão algum consolo face à nossa condição ?
YC: Na Arte encontra-se a Eternidade que só a curta vida não permite.

EP: Muito obrigado, Professora
Y.C:Um abraço, e filosofemos, sempre!

​CONVERSA COM FREDERICO LOURENÇO

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Fotografia de Ricardo Almeida
​Frederico Lourenço (FL) é professor, tradutor, ensaísta e escritor. A conversa que se segue resultou de um generoso contributo que deu à Estante do Porteiro (EP).
 
EP: Trabalhar com as palavras é como esculpir ou é como recolher flores frágeis num jardim? 
FL: Eu vejo mais como esculpir. Por vezes é quase partir pedra. A palavra é uma espécie de material duro, que nem sempre se deixa trabalhar.

EP: Acontecimentos bíblicos servem de fonte ao filme “A Palavra” de Carl Theodor Dreyer. Quais as palavras mais belas e transformadoras que encontra na Bíblia?
FL: “O sábado foi feito para o homem; e não o homem para o sábado”. Cada vez acho essa frase de Jesus (que só Marcos transmite) incrivelmente revolucionária. A religião não pode servir para aprisionar as pessoas.

EP: A tragédia dos homens é não compreender essas palavras transformadoras? Não colocar em prática todos os ensinamentos de Jesus?
FL: Continuo convencido disso: a mensagem de Jesus é onde está a chave para os problemas humanos.

EP: Os episódios da Torre de Babel e do Pentecostes são reveladores da importância da tradução? Qual o espírito que o inspira para brindar o leitor com tão belas revelações presentes na sua obra? 
FL: A tradução é sempre imperfeita, isso é algo que o tradutor tem de aceitar à partida. Aquilo que mais me inspira é a vontade de dar a conhecer o texto da Bíblia com rigor académico. Tento estar à altura da tarefa dedicando-lhe todo o meu trabalho, mas também sei que o resultado nunca poderá ser perfeito. Esforço-me, no entanto, por fazer o meu melhor. 

EP A poesia, a matemática e a música são os divertimentos de Deus ou são as fugas dos homens?
FL: Para muitas pessoas, são a prova de que Deus existe. No meu caso, a prova decisiva da existência de Deus é a música dos grandes compositores (Bach. Mozart, Beethoven). Não há fumo sem fogo.

EP: Qual a importância da música de Johann Sebastian Bach no seu método de trabalho?
FL: Bach acompanha-me todos os dias, sobretudo a sua obra para cravo. Vou ouvindo a Arte da Fuga, as Variações Goldberg, o Cravo Bem Temperado, as Partitas. Normalmente por Gustav Leonhardt, cuja maneira de tocar cravo tem algo de místico.

EP: A poesia e a tradução buscam a palavra certa ou a palavra perdida? 
FL: No caso da tradução, partimos da palavra certa, que é a original, e depois andamos à procura da palavra perdida algures na nossa própria língua que a transmita.

EP: Existem mais significados que significantes?
FL: Os significados constituem todo um universo fascinante.  

EP: O silêncio abarca todos os sentidos? E a palavra?
FL: A palavra fica sempre aquém da música, que chega mais longe, mas é preferível ao silêncio, embora eu precise do silêncio para nele encontrar as palavras de que preciso.

EP: Deus é silêncio?
FL: É o silêncio que O ouvimos melhor, talvez. Mas Deus está em tudo, sempre. Nada Lhe é alheio. Mas a maneira que Ele tem de se fazer sentir no mundo humano é o amor com que as pessoas se amam.
​

EP: Muito Obrigado, Professor.

CONVERSA COM FERNANDO BESSA

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 Fernando Bessa (FB) é Coronel da Guarda Nacional Republicana e Sociólogo. A conversa que se segue resulta de um generoso contributo que deu à Estante do Porteiro (EP).
 
EP: O livro de “Trás-os-Montes a Angola, trajetórias (im)prováveis “mistura crónica e autobiografia”. Como surgiu a ideia de escrever este testemunho histórico?
FB: É uma crónica que naturalmente também se assume como autobiografia, embora a ideia original não fosse essa! Só com a adoção deste formato misto poderia relatar, na primeira pessoa, todas as estórias reais que constituem o livro, de proporcionar ao leitor a possibilidade de navegar e de se identificar ou não com o testemunho pessoal que aborda uma época de transição na sociedade portuguesa.
A ideia de trazer à luz um livro como este já me perseguia há bastante tempo, mas condicionalismos diversos não me permitiram fazê-lo! Sempre considerei como um dever deixar testemunhos escritos às gerações que nos precedem para que melhor possam percecionar e compreender as nossas vivências e os nossos modos de vida.
Por vezes, sei que não é fácil transmitir testemunhos que descrevem, o mais fiel possível, as vivências de uma geração, mas existiu, da minha parte, essa preocupação durante toda a elaboração do livro que, diga-se, me deu muito prazer em escrever, desejando que os leitores também tenham sentido esse prazer ao lê-lo.
 
EP:  Da leitura do livro resulta para o leitor uma tenaz disciplina, persistência e foco nos objetivos. Estas características da vida militar são também essenciais na vida civil, na organização mental do indivíduo e no fortalecimento de uma comunidade? Algum segredo que nos queira revelar para essa” estabilidade de nervos em qualquer circunstância” quase como o ferro e aço forjado num fogo criador único?
FB: Considero que essas caraterísticas/qualidades são essenciais em qualquer momento da vida de todas as pessoas. Elas são a diferença entre o fracasso e o sucesso, mas, acima de tudo, elas também são a força interior que nos mantém ativos e resilientes nos momentos de fracasso.
Creio que a forja e o ferreiro responsáveis por essa estabilidade em “qualquer circunstância” foram, respetivamente, a dura juventude vivida em Trás-os-Montes e a exigente educação, às vezes espartana, a que o meu falecido pai me sujeitou. Foram a água e o fogo que forjaram o que hoje sou e de que muito me orgulho. Não há assim nenhum segredo! Estou certo de que esta foi a tempera aplicada a muitos dos então jovens transmontanos.
 
EP:  As origens transmontanas também foram importantes nesse estilo de vida, na superação das dificuldades ou também há uma pontinha de “acaso” no universo que nos escapa?
FB: Conforme já referi, as minhas origens e as vivências de uma dura infância em Trás-os-Montes marcaram de forma indelével a pessoa que se foi consolidando ao longo dos anos e se transformou no meu eu atual! No entanto, estou certo de que esse “acaso” do universo que nos escapa também contribuiu, sem dúvida, para me colocar, mesmo contra a vontade dos homens, nos locais onde essa tempera podia ser testada constantemente na superação das dificuldades com que me deparava.
 
EP: Qual a importância do livro e da leitura na sua vida?
FB: São dois fatores indissociáveis e importantes na minha vida e se é verdade que na minha infância o acesso aos livros era difícil, também é verdade que fui contornando essa dificuldade recorrendo aos livros emprestados pela biblioteca itinerante da Fundação Calouste Gulbenkian e da leitura completa dos almanaques do tio Patinhas, das revistas do Zorro, do Major Alvega e da coleção completa do Astérix de um amigo de infância. Esta última, foi um regalo lê-la e, os dois, esperávamos ansiosamente pelo lançamento de cada um dos seus incríveis números. Esta é uma realidade desconhecida das atuais gerações. Apesar de o acesso atual aos livros estar completamente democratizado e a leitura dos mesmos ter evoluído positivamente, também se tem vindo a verificar que esta tendência está em causa com o forte apego dos jovens às múltiplas opções que as novas tecnologias lhes têm proporcionado.
 
EP: Nas missões das Nações Unidas, alguns colegas de outras nacionalidades traziam sempre um livro de emergência para leitura rápida? ou não havia tempo para isso? Havia tempo para a leitura e algum trabalho de instrução, partilha de leituras e livros com as comunidades locais?
FB: Em todas as missões que realizei (ONU, EU e Coligação Internacional) tive oportunidade de vivenciar diferentes e enriquecedoras situações do ponto de vista profissional e humano. Elas foram de uma riqueza e diversidade incomensuráveis e permitiram-me olhar o Mundo e a sua dialética hipocrisia/bondade de uma forma totalmente diferente.
Principalmente na primeira missão, em Angola, tive oportunidade de ler bastante, uma vez que tinha iniciado a minha licenciatura em Sociologia. Todos os momentos livres eram aproveitados para colocar em dia algumas leituras. Os meus colegas de trabalho também liam livros nas suas línguas maternas e todas as semanas havia três horas de formação sobre as Nações Unidas, incluindo a nossa atividade diária com a polícia local e as respetivas comunidades. Também providenciávamos instrução à polícia local e aos militares. A leitura era um refúgio e uma forma de descontrair de tarefas altamente desgastantes  - interação com a população que era vítima das maiores sevícias por parte dos beligerantes - tendo em consideração que nas zonas do interior onde me encontrava não havia quaisquer divertimentos ou zonas de lazer. Estávamos em completo isolamento! Não era fácil, pelos menos nas zonas onde o conflito entre as partes foi muito intenso e destruidor.
 
EP: Voltando ao seu livro, o leitor fica com sede do relato de mais episódios. Vai continuar a escrever mais crónicas, autobiográficas ou não, ou apenas quis deixar o testemunho que se fizermos a nossa parte, o universo traz sempre boa energia para cada um?
FB: Sim, é minha intenção voltar a escrever outro(s) livro(s) com relatos e experiências de outra(s) missão(ões) que considero bastante marcantes da minha vida e do meu percurso profissional. Porém, os planos futuros só se tornam realidade quando concretizados e, nos últimos tempos, a inspiração para escrever não tem surgido. Como sempre disse, para escrever é preciso sentir vontade e inspiração. Vou tentar!
Normalmente, o universo carrega em si muita energia positiva, é o próprio homem, com a sua ambição desmesurada, que a transforma em negativa com consequências nefastas para os seus concidadãos. No entanto, é preciso que o ser humano não seja um mero e passivo espetador de tudo o que o rodeia e interfere na sua vida! Ele tem que, forçosamente, afirmar-se e assumir-se como um ser presente e atuante que se transforma num veículo de mudança da sua vida e da daqueles que o rodeiam. É claro que, as boas energias têm de ser procuradas e, por vezes, criadas para que o nosso percurso de vida seja de constante superação e satisfação, permitindo contribuir para um Mundo melhor e mais positivo.
 
EP: Muito Obrigado, Fernando Bessa.
FB: Eu é que agradeço a oportunidade de partilhar alguns estados de espírito. Boa sorte para o blog.

​CONVERSA COM TOMÉ VIEIRA 

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Tomé Vieira (TV) é professor e autor. A conversa que se segue resulta de um generoso contributo que deu à Estante do Porteiro (EP).​

EP: Qual a importância da História no contexto actual de Portugal e do Mundo?
TV: Eu diria que a História nunca foi tão importante como nos dias que correm. E nesta época que nos coube em sorte viver estes correm mesmo, de forma vertiginosa, embora já Virgílio alertasse para isso há dois milénios quando escreveu nas Geórgicas que «irreversivelmente o tempo foge». Lá está a importância do conhecimento histórico. Bem sei que se trata de uma ideia para muitos já gasta, mas acredito que devemos conhecer bem o passado para melhor viver o presente e, sobretudo, para podermos construir um futuro melhor. Que mais não seja, para não cairmos no ridículo como foi o caso daqueles indivíduos que resolveram profanar a estátua do Pe. António Vieira, insultando-o de esclavagista: António Vieira, que foi apenas um verdadeiro precursor dos direitos humanos, lutando sem tréguas, muitas vezes com custos pessoais gravíssimos, em defesa dos povos indígenas americanos, assim como dos cristãos-novos e dos judeus, vítimas de fortes perseguições na época.
Além disso, confesso que não nutro qualquer simpatia por este movimento que algumas franjas das sociedades do mundo ocidental tentam impor, no sentido de nos autoflagelarmos intelectualmente pelos erros dos nossos antepassados, como se fosse lógico, ou sequer producente, ler acontecimentos históricos de forma descontextualizada, ou seja, interpretar esses acontecimentos passados com o código de valores ético-morais dos nossos dias. Sinceramente, penso que muitas destas pessoas apenas querem semear a discórdia, mostrar a sua irreverência a qualquer custo, arvorando-se por vezes a um patamar deífico: destruindo o passado, resta o nada a partir do qual julgam poder construir os seus idílios; ou então, semeando o caos, será mais fácil arregimentar os descontentes e os desorientados para uma nova evangelização, seja ela de que crença for, incluindo a mais insidiosa que é sempre a daqueles que dizem não ter crença alguma.
 
EP:  De que forma a educação e a cultura podem ser as novas aplicações para telemóveis?
TV: Eu faço uma destrinça muito clara entre educação e ensino. O ensino cabe ao Estado, que em princípio se mune de uma súmula essencial do conhecimento proposta por especialistas das mais variadas e abrangentes áreas, podendo e devendo fazer-se uma ponte transversal para a cidadania e a ética. A educação é outra coisa completamente diferente, trata-se de um conjunto de valores, em que a moral e a ética imperam, assim como tudo o que diz respeito a aspetos psicossociológicos relacionados com a vida individual, familiar e comunitária, e isto não é, não pode ser do âmbito do Estado. Quando deixamos que os governantes decidam que códigos ético-morais nos devem orientar, estamos a prescindir, pura e simplesmente, da nossa liberdade.
Se bem entendi a pergunta, um dos maiores desafios atuais é precisamente como aproveitar o potencial das novas tecnologias, em particular dos telemóveis inteligentes, para promover o ensino e a cultura. A Escola debate-se precisamente com este problema, pois a hiperestimulação a que os miúdos são sujeitos desde que nascem entra em permanente conflito com os meios de ensino que estão muito longe dessa vertigem informativa. A globalização e o mundo tecnológico trouxeram-nos a esta encruzilhada: a informação nunca foi tão acessível como hoje, mas os meios para a manipular também nunca foram tão poderosos. Por outro lado, nunca foi tão difícil como agora tentar exercícios essenciais como o silêncio, a introspeção, a revisão, seja ela mental ou material, e a correção. O imediatismo é uma epidemia difícil de curar.
Vivemos, por isso, num momento de viragem civilizacional. Se o mundo em transformação será melhor ou pior, isso ainda é uma incógnita.
 
EP:  Os Portugueses estão exilados no próprio País? Apenas sobrevivem?
TV: Questiono-me permanentemente: se os portugueses que emigram conseguem por norma construir vidas de sucesso, destacando-se nas mais variadas áreas por esse mundo fora, por que razão o não fazem em Portugal? Só encontro uma resposta: falta-nos organização, rigor e lideranças dignas desse nome.
Quando quem devia guiar apenas olha para o próprio umbigo, só pode dar em desastre.
 
EP: No Palácio das Especiarias esboçam-se linhas identitárias. Há um típico ser Português? Existem elites divorciadas das massas ou com a tecnologia e o digital, as fronteiras esbateram-se?
TV: Talvez Fernando Pessoa e Eduardo Lourenço tenham razão, o nosso problema é mesmo a hiperidentidade. Os portugueses só são portugueses quando são tudo, em todo lado, particularmente onde nunca estiveram: ora, isto é avassalador. Daí a nossa eterna propensão para o exagero, tudo ou nada. Seremos sempre os melhores ou os piores, não há meio-termo. Herdámos muita coisa da cultura greco-latina, mas falhámos a aula aristotélica do meio-termo. O equilíbrio, a moderação e a harmonia dizem-nos pouco, já para não falar na sensatez. No entanto, temos o reverso da medalha, que abona muito a nosso favor: somos insaciáveis e destemidos. Talvez por isso o eterno queixume e a incurável insatisfação, ou não fôssemos todos nós, portugueses, órfãos do Sebastianismo.
Este persistente sentimento de orfandade de um verdadeiro líder, alguém ousado, visionário e inspirador, é transversal a todas as camadas da sociedade portuguesa. É bem verdade que os exemplos recentes ao nível das lideranças são pouco abonatórias, fazendo-nos saltitar triste e aflitivamente de crise em crise, sujeitando-nos ao recorrente e aviltante peditório internacional, como se não conseguíssemos fazer pela vida. Mas não tem de ser assim! Basta lembrar figuras como o nosso primeiro rei, D. Afonso Henriques, como D. Dinis, o Infante D. Henrique, D. João II (apenas para citar alguns exemplos), governantes que tinham projetos e verve reformadora.
Precisamos como de pão para a boca de alguém que nos volte a mostrar o horizonte, que nos guie de novo na construção de um Portugal mais ousado.
Quanto à tecnologia e ao digital, considero que são apenas meios, veículos, a essência da condução, porém, é a mesma.
 
EP: Como surgiu a ideia de escrever o Palácio das Especiarias?
TV: O livro surgiu de uma colaboração com um ex-aluno dos meus tempos iniciais como professor, o Tiago Pereira, uma espécie de consultoria histórico-cultural. Um dia o Tiago contactou-me, pois lembrara-se das minhas aulas a propósito d’Os Lusíadas quando decidiu reconfigurar um antigo edifício na Praça Luís de Camões, em Lisboa. Pediu-me para lhe indicar 10 nomes maiores da Lírica portuguesa, respetivas bibliografias e citações pertinentes, pois queria devotar-lhes as dez alas do hotel que estava a criar. Assim nasceu o Solar dos Poetas. Quase em simultâneo, resolveu recuperar outro edifício histórico na mesma zona e transformá-lo numa homenagem à História de Portugal. Assim nasceu o Hotel Palácio das Especiarias. Os textos que fui produzindo para a criação das alas deste hotel serviram de base para o livro agora editado, visto que na prática tinha feito uma síntese dos principais acontecimentos e personalidades da nossa História.
 
EP: Qual a importância da escrita e da leitura na vida do Tomé Vieira?
TV: Posso dizer que a escrita e a leitura me são tão essenciais como a água que me sacia a sede. Sempre fui muito curioso, mais dos assuntos do intelecto do que dos aspetos mais práticos e materiais do nosso quotidiano. Um objeto que marcou a minha primeira infância foi precisamente um livro, livro esse que povoou de maravilhas os meus imberbes dias, mas do qual lamentavelmente perdi o rasto: uma edição ilustrada do Romance da Raposa de Aquilino Ribeiro. Não foi há muito tempo que eu vivi um momento de extrema felicidade, quando o reencontrei em casa dos meus pais e pude finalmente associar as letras às imagens que eu conhecia de cor, amplificadas como é óbvio pela imaginação infantil.
O facto de ter sido um garoto muito tímido, por vezes introvertido, proporcionou-me a apetência para a leitura. Mesmo quando era jovem, muitas vezes acontecia-me estar numa festa e sentir um desejo súbito de regressar para uma das leituras que me interessavam no momento. Além disso, como sempre adorei viajar, mas os limitados recursos económicos mo não permitiam, encontrei na leitura uma forma económica de percorrer este mundo, e todos os outros também.
Por tudo isto, desde muito cedo me habituei a investir parte significativa das minhas poupanças em livros, visto que comecei a trabalhar nos meus tempos livres e nas férias desde a infância.
Quanto à escrita, julgo que deriva da minha paixão pela leitura e do desejo de me tentar expressar com a beleza e a proficiência que me habituei a admirar nos inúmeros autores que fui lendo ao longo dos anos.
 
EP: Muito Obrigado, Tomé .
 ​

CONVERSA COM HELENA VASCONCELOS

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Helena Vasconcelos (HV) é crítica literária, escritora e dinamizadora de inúmeras comunidades de leitores em bibliotecas, em universidades, na Culturgest e na Fundação Calouste Gulbenkian. A conversa que se segue resultou de um generoso contributo que Helena Vasconcelos deu à Estante do Porteiro (EP).
 
EP: Imagine que tinha sido Adão a comer, em primeiro lugar, o fruto proibido. Qual seria o lugar de Eva?
HV:Tenho pena do pobre Adão, tão lerdo! Não percebe nada de nada, anda para ali, no paraíso, a mostrar os músculos, sem saber o que fazer com aquele corpinho que Deus lhe deu! Tem de ser a espevitada da Eva a dar-lhe a conhecer tudo o que há de bom, na vida! 


EP: O poder da literatura é aferível, simbolicamente, através da narrativa bíblica?
HV: A Bíblia é um dos grandes livros que servem de base para a chamada  Literatura Ocidental, tal como as narrativas homéricas que, pessoalmente, acho mais ricas.  A Bíblia tem boas histórias, claro, mas é na Ilíada e na Odisseia que se encontra tudo - como, mais tarde, em Shakespeare, Camões e Cervantes, por exemplo.

EP: As farmácias deviam substituir as prateleiras de medicamentos por estantes de livros?
HV: E as livrarias? Deveriam vender medicamentos? Talvez. Mas sim, um bom livro é melhor do que uma má aspirina.

EP: Quais os ingredientes para um bom livro?
HV: Sou má cozinheira. No entanto, no que diz respeito a livros creio que os ingredientes poderão ser, primeiro, uma boa história, em segundo lugar, uma boa história, em terceiro lugar, uma boa história. Depois, junte-se um léxico rico e, por fim, faça-se uma boa cosedura, lenta ou rápida, conforme a intenção. 

EP: O leitor moderno sofre de distúrbio de atenção ou padece do gosto dos outros?
HV: Creio que não percebo a questão. Pergunta-me se acho que o leitor contemporâneo falha, no que diz respeito ao sentido crítico? Não sei. A minha opinião é a de que nunca se leu tanto como agora, do bom ao mau, do péssimo ao excelente. Quando me falam num passado "glorioso", cheio de gente cultíssima que lia muito e em que só havia autores excelentes, fico espantada. Até há bem pouco tempo, a maior parte da população de Portugal só tinha a quarta classe. Não existiam as bibliotecas que agora estão espalhadas por todo o país. Só uma elite restrita tinha a possibilidade de comprar livros. Os autores e autoras morriam de fome, ou emigravam ou tinham outras profissões. Prefiro esta abundância - que poderá ser mal, ou pouco, aproveitada - à escassez.

EP: Ainda existe espaço para uma literatura independente, como no cinema, ou assistimos a uma sistematização das preferências dos leitores?
HV: Esse espaço existe sempre, para quem quiser ocupá-lo. 

EP: A imagem colonizou a palavra?
HV: Sempre assim foi. Não é uma questão de "colonização" Enquanto a alfabetização foi diminuta - até há bem pouco tempo, em Portugal - a imagem servia de ilustração de ensinamentos e de ideias. Basta olhar para as igrejas - pinturas, vitrais, frescos, composições de azulejos - onde se contavam as histórias que "educavam". Naturalmente, desde os finais do séc. XIX, que a fotografia e o cinema ocupam um lugar especial. No presente, observa-se uma interessante dicotomia nas redes sociais - as que privilegiam a palavra escrita (Facebook, p. ex.) e as que preferem a imagem (Instagram, p. ex.) . Qual prevalecerá? 

EP: As artes, em geral, têm vindo a adaptar-se melhor que as letras ao mundo cibernético?
HV: São duas linguagens distintas, com ritmos diferentes. Embora as chamadas "vanguardas", numa e noutra área, tenham andado a par, no século XX. Mas tenho dificuldade, por exemplo, em encontrar paralelo, nas artes visuais, ao Ulisses ou ao Finnegans Wake do Joyce. "Aquilo" é tão incrivelmente novo! Quanto ao livro, em si, como objecto, creio que permanecerá mais algum tempo - não muito. Se se inventarem suportes melhores, venham eles!

EP: Um quadro digital é mais belo que um quadro a óleo?
HV: Depende da concepção do belo.

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P: Como vê o futuro à luz do que foi o passado e de acordo com que estamos a viver no presente?
HV: Não sou vidente mas espero que a informação globalizada ajude a prevenir os piores actos dos seres humanos - guerras, atentados, destruição, violência no seio das famílias, das comunidades. Pessoalmente, o futuro não me preocupa. Espero vivê-lo intensamente, longamente, alegremente, como tenho feito com o meu tempo, até agora.
 
EP: Muito Obrigado, Helena.

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CONVERSA COM MARIA JOÃO CANTINHO

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Foto de Maria João Cantinho
​Maria João Cantinho (MJC) é professora, editora e escritora. A conversa que se segue resultou de um afável contributo que a autora deu à Estante do Porteiro (EP).
 
EP: O pensador de Auguste Rodin está curvado com uma das mãos sobre o queixo. Que anjos e demónios o inquietam?
MJC:A figura de Rodin é a do melancólico por excelência, ensimesmado. Rodin esculpiu-o, representando Dante. É difícil adivinhar-lhe os pensamentos, mas, pela pose e pela tensão que lhe é imprimida por Rodin, poderemos talvez dizer que a sua mente está no mistério da existência ou concentrado na visão das «Portas do Inferno», tão perto do seu lugar, mergulhado no abismo da miséria humana, da sua finitude. Nele, a filosofia é uma demora de pedra.
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EP: Pensamos muito e conhecemos pouco? 
MJC: Eu diria que pensamos pouco e conhecemos ainda menos. Estou muito próxima do que Montaigne dizia acerca dos limites do conhecimento humano. E o mundo está cada vez mais reduzido no seu pensamento, com a dilatação da técnica e das tecnologias. É um paradoxo e não é de hoje. Raros são os que renunciam para poder pensar livremente, mas, ainda assim, nada lhes é prometido. Só a liberdade e a solidão.

 EP: Como lidaria a famosa escultura com um telemóvel inteligente nas mãos, caso fosse insuflada de vida? 
MJC: Não o compreenderia, de todo. Não sabia que utilidade teria, achá-lo-ia demasiado barulhento e intrometido na sua vida pacata de pensador. São coisas incompatíveis, a velocidade que hoje nos é exigida, à mercê dos telemóveis inteligentes, e a do pensador, mergulhado no seu mundo interior, silencioso e solipsista.

EP: Poderia esse pensador, animado pela tecnologia, habitar um quarto descrito por Franz Kafka? Em que tédio, desespero ou ilusão viveria este novo pensador? 
MJC: Gosto de imaginar a hipótese. Mas o quarto de Kafka é o nosso quarto, somos nós esse Gregor Samsa, inventado por Kafka. Os incapazes de comunicar, de olhar, de sair para fora do quarto. E há nisso um desespero que tem algo em comum com o do pensador, uma melancolia comum, mas o pensador é, ainda livre, pode sair de si e olhar. O homem de Kafka é a criatura, esse estado miserável a que chegámos, prisioneiros de tudo quanto nos rodeia. O primeiro vive a ilusão do conhecimento, o segundo o desespero da solidão.

EP: O bem e o mal fazem parte do homem. São fruto de uma falha de pensamento, de uma falta de conhecimento interior, de um circuito neuronal ou de uma ira distraída de Deus?
MJC: Gosto de pensar como Platão, que dizia que, ainda que o bem seja uma ideia inata (faz parte do homem), o mal é dele privação, uma forma de ignorância, uma espécie de cegueira, se assim quisermos. Por isso, é o mal que constitui essa falha de pensamento. Claro que isso tem que ver com a natureza incompleta do homem e com o seu caminho (ou não) para o conhecimento interior. Há uns que se situam (raros) acima de outros.

EP: As personagens de Kafka e Dostoievsky vivem torturadas entre a tradição e a modernidade? E as personagens de carne e osso, que se cruzam nas alamedas anónimas das cidades, em que tortura se deleitam? 
MJC: Mais dilaceradas, creio eu, com o desalento e a solidão das grandes cidades. Não há hoje qualquer relação com aquilo que foi o tempo de Kafka e de Dostoievsky ainda menos, creio eu. Unia-os a culpa e a expiação como modo de tortura interior, as suas personagens são roídas por essa culpa que nada redime. Hoje já nem há culpa nas personagens de carne e osso. Só o vazio e o exílio disso que foi a tradição. Mergulhadas no ritmo frenético e sem tréguas da cidade, automatizadas pelo capitalismo selvagem e tornadas indiferentes, diante de tanta informação e tanta banalização das imagens. Nunca houve, como hoje, tanta informação e tão pouca capacidade de julgar por si próprio. É monstruoso.

EP: A criação artística é um inferno com sentido? Arrancar raios de luz dos círculos da escuridão?
MJC: Tem sempre sentido, pois é o único modo de tentarmos escapar ao inferno. Senão como iríamos resistir-lhe? Não poderíamos nunca prescindir dessa procura da beleza ou deixaríamos de ser o que somos: humanos. Embora pobres, mas humanos e esfomeados.

EP: Que narradores criamos para nos afastar do espectro da morte? São as narrativas de poder, glória e amor-ódio que fazem da História Universal uma angustiante repetição? Como lidou Walter Benjamin com estas temáticas tão humanas?
MJC: Como lidou ele com as narrativas da história como poder, queres tu dizer…opondo-lhe uma visão descontínua da história e ao arrepio das narrativas fatídicas e que transformaram o século XX num inferno. Pondo-se sempre do lado dos «vencidos», das vítimas destas construções falsificadas da história. O caminho, dizia ele, era o da revolução, o único gesto capaz de travar o comboio da história que nos levava à catástrofe. Travar esse comboio significava também salvar a tradição e reactualizá-la, em lugar de caminhar em direcção ao futuro triunfante do progresso.

EP: Uma sinfonia de Mahler, um quadro de Klee e um filme de Visconti podem ser bons argumentos para negociar a eternidade com São Pedro? Ou basta ir a uma boa loja de ferragens?...
MJC: Não sei como se negoceia a eternidade com São Pedro. Mas imagino que poucas coisas possam ser usadas para tal. Se não for a arte e a literatura, o que poderá salvar a carne? Eu iria mesmo por aí: a 5º de Mahler, o “Anjo da História” e “Morte em Veneza”, de Visconti. Não podemos descer por aí abaixo ou então não acreditamos em nada.

EP:. É verosímil acreditar em tudo que pensamos? Ou acreditar com os olhos, ver as coisas belas deste mundo é o único consolo que nos resta?
MJC: Acreditar com os olhos é a condição primeira, neste universo em que a visão é o mais redentor dos sentidos. Mesmo se a beleza for terrível, se matar. O gesto salva-nos. Depois é a escuta do rumor secreto da língua e do mundo, que nos leva ao êxtase. São poucas coisas em que devemos acreditar. A beleza é uma delas, o bem é outra. E gosto de pensar como os gregos antigos o faziam, em que beleza e bem não eram um sem o outro, nesse altíssimo conceito de kaloskagathos.

EP: Muito Obrigado, Maria João.

CONVERSA COM ANTÓNIO CARLOS CORTEZ 

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​António Carlos Cortez (ACC) é poeta, professor de literatura portuguesa, ensaísta e crítico literário. A conversa que se segue resultou de um amável contributo que deu à Estante do Porteiro (EP).
 
EP: A escrita é uma reconstrução, um processo ou um fim?

ACC: A escrita é um processo que visa um fim. Dependendo da finalidade a que se destina - o processo de construção de um poema não é exactamente o mesmo de um ensaio, ou de uma notícia - pode esse processo ter um ritmo mais lento, gradual, investigativo (um romance exige essa construção lenta, tal como um ensaio, que exige investigação), ou ser mais irruptivo. Um poema lírico pode, porventura, ser uma resposta imediata a uma qualquer experiência. Mas, em todo o caso, o escritor trabalha com palavras e por isso deve ter sempre presente que ao trabalhá-las o processo deve ser maturado. Por isso um poema lírico é reescrito, alterado. Nesse sentido, reconstrução do já escrito é também um dos momentos da redacção poética. Vivemos, sentimos, imaginamos, transferimos para o mundo outro - o textual - o que a experiência nos deu. Nesse processo de transferência, trabalhando a linguagem, constrói-se a forma significante, o poema. Isso pede reconstrução, e assim a escrita literária acaba por ter como seu próprio e único fim o processo mesmo de ser escrita.

EP:Onde se encontram ou desencontram o poeta e o crítico literário?

ACC: O poeta não está nunca desvinculado da natureza crítica que toda a leitura que faz dos outros e de si próprio pressupõe. O facto de escrever regularmente crítica literária possibilita-me ler o passado, a historicidade poética, os meus contemporâneos. Nesse acto de atenção ao outro, creio que a minha poesia acaba por ganhar mais sentido. Ninguém escreve sozinho. Ainda que a poesia seja um acto que pede uma solidão estrutural, o acto crítico compensa essa necessária solidão e abre o leitor que somos à vida da poesia, precisamente o título do livro de crítica e ensaios reunidos de Gastão Cruz, e não acaso é a vida da poesia que o poeta persegue, a vida dos textos, da memória, da tradição. Ou seja: ao poeta que exerce critica é impossível o desencontro entre a dimensão criativa e rigorosa a que o poema aspira e a criatividade e rigor com que deve, no acto crítico, ler a poesia do passado e do presente. Não há desencontro, há simbiose.

EP: A palavra certa cura o tempo incerto que vivemos?

ACC: Não creio que a palavra possa curar o tempo incerto em que vivemos. Todavia, como bem vê Carlos de Oliveira, as palavras têm um poder, são perigosas ou frágeis, podem apoucar a existência ou engrandecê-la. Razão suficiente, penso, para que tenhamos atenção às palavras e ao seu peso. No campo político isto é especialmente importante: quando um fascista como Trump, ou Bolsonaro, Orban ou Maduro esvaziam a possibilidade das palavras puderem ter significado e consequência, o que fazem é instrumentalizar as palavras pondo-as ao serviço da propaganda. Hitler teve como lema de 1933 a frase "Fazer a Alemanha grande outra vez". Trump tem o mesmo horizonte na mira. A sua linguagem, verbal e corporal são próprias de alguém que está pronto para engendrar a guerra. Para isso a linguagem que produz é e tem de ser ínvia, cínica, imediata (o Twitter, a resposta pronta, irreflectida, mas com aparência de lucidez ou de coragem). Mentir, mentir, mentir, essa é a máquina que os actuais fascistas (populismo é eufemismo) usam e de novo é a linguagem a arma que usam para manipular. Lições aprendidas com Mussolini, Estaline, Goebbels, mas também com Johnson, Nixon, Reagan, Os dois Bush… No fundo, a palavra certa no tempo incerto só poderia ser a da verdade. A poesia não vem dizer, não pretende dizer nenhuma verdade, nem nenhuma mentira. A palavra de poesia pode ser a descoberta de um real outro. Nessa palavra criativa, de imagens novas, nascidas da associação permanente de sentidos, há uma procura incessante  - a procura da liberdade. Só nessa perspectiva, na medida em que o poeta diz não a toda a espécie de totalitarismos, e de paternalismos; só porque é palavra poderosamente livre é que poderemos dizer que a poesia pode ser a palavra certa. Mas ela actua no plano da imaginação, reflecte-se nas tomadas de posição mais heterodoxas do poeta. Pode ter, como mostram a poesia de Brecht, de Éluard, de Gottfried Benn, de Ferreira Gullar, ou de Ruy Belo, um potencial agitador, ou de consciencialização política e alertar para a urgência da verdade. Nesse sentido, então, direi que sim, que pode haver momentos em que dada imagem, frase, metáfora, podem ser palavras certas. Pedras atiradas contra o tempo incerto.
 
P: A pandemia tornou o leitor acidental mais consciente da importância do livro?

ACC: Talvez. Creio que os hábitos de leitura em Portugal, que são manifestamente poucos, não se alteraram grandemente por causa desta pandemia. Terão descoberto os nossos jovens autores que, antes desta situação de confinamento, não conheciam? Acaso se pediram em compras de livros online as obras de Cardoso Pires ou de Rúben A. Leitão? Estamos em ano de centenário do grande poeta João Cabral de Melo Neto - até agora o que se fez, leu e escreveu sobre o grande poeta de Morte e vida Severina? Daniel Faria morreu há 20 anos, houve livros deste poeta a serem mais lidos em tempo de pandemia? Sou céptico em relação a estes meses de confinamento. O que se leu foi em grande medida o que se lua anteriormente. Romance pseudo-policial, livros de gastronomia e de auto-ajuda. Coisas assim. Junto dos meus alunos procurei dar-lhes a conhecer alguns poemas de autores que os currículos não contemplam: Armando Silva Carvalho, Assis Pacheco, Jorge de Sena, Fiama, Luísa Neto Jorge, Cesariny… Mas a corrente é forte: o online pode mesmo afastar as pessoas do livro e da leitura do que é complexo, a literatura, a filosofia, a arte… E não se formaram leitores nos últimos 20 anos. O que se fez com as gerações mais novas, retirando a literatura dos programas de Português, foi letal: não se compra poesia, nem romance digno desse nome. Não podem ler o que não conhecem e a escola, salvo excepções, não formou leitores para o futuro. Tornou os nossos jovens debitadores de regras de gramática, mas insensíveis e incapazes de apreciar e escrever sobre poesia, ideias, história. Produzimos gerações de analfabetos computacionais que lêem Danielle Steell, Dan Brown, Rodrigues dos Santos e outros pseudo-romancistas… tenho dúvidas quanto aos milagres que esta pandemia, no caso de criação de novos horizontes de leitura, possa ter gerado.
 
P: O que o atrai na prosa poética? Como começou a escrever?
ACC: Atrai-me a possibilidade de cruzar uma respiração mais longa, a frase mais longa e a hipótese de, a partir de uma frase com ritmo mais longo, poder irromper a metáfora, a imagem, aquilo a que eu chamo o flash verbal. A prosa na poesia tem uma tradição que remonta a Alouisius Bertrand, Baudelaire e Rimbaud. Li maravilhado, no fim da adolescência e já mais tarde, com vinte e muitos anos, Gaspar de la Nuit, de Bertrand, e sobretudo os Petits poémes en prose, de Baudelaire e, com absoluta fidelidade ao seu programa alquímico, a poesia de Rimbaud. A procura de uma prosa diamantina, isso me move. Ramos Rosa, Octavio Paz, Herberto, Fiama, Ruy Belo, Eduardo Guerra Carneiro, Carlos de Oliveira, Gastão Cruz, Guinsberg, esses também me foram e são essenciais. Quer dizer, o poema em prosa é a forma significante que, neste momento, mais concorda com a minha respiração.

EP: Quantas paisagens interiores o poeta tem de atravessar para alcançar a visão da forma perfeita?
​
ACC: As paisagens que o levem, como as imagens do poema de Camilo Pessanha, ao "lago escuro silente de juncais" são múltiplas, inumeráveis. Para alcançar a visão perfeita o poeta tem de estar atento como uma antena, como diz Sophia. Tem de ser vigilante e somar à vigilância o rigor da expressão, como pede Luiza Neto Jorge. Só assim as imagens interiores podem transportar-se para um mundo de linguagem único e independente. É a voz inimitável, a forma perfeita aquilo que se persegue na poesia, nas artes. Isso demora uma vida, é uma aprendizagem constante.
 
EP: Muito obrigado, António Carlos,

CONVERSA COM JOANA BÉRTHOLO

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Foto de Vitorino Coragem
Joana Bértholo (JB) é escritora e dramaturga. A conversa que se segue resultou de um generoso contributo que deu à Estante do Porteiro (EP).
 
EP: A lógica do eco implica a replicação de um padrão e, no limite, a distorção dos significados?
JB: Não tinha em mente a distorção de significados mas sim a propagação da voz, e tudo aquilo que repetimos ou perpetuamos sem saber porquê. Primeiro soube que queria falar de ecologia, pois isso é o que sempre aparece quando me sento para escrever. Que há eco em ecologia, é uma evidência. Por outro lado, demoro muito tempo a construir mapas de ligações entre coisas que não estão obviamente ligadas, mas sabia que a ninfa e Narciso estavam no livro. Aquelas páginas do Metamorfoses já têm tudo! Há o fascínio dele pela sua própria imagem, a forma como ela é condenada a ecoar tudo o que ouve, mas sobretudo atraiu-me aquela forma de descrever a rejeição, em que não há nada senão o discurso dele. Depois de ser rejeitada por Narciso o corpo de Eco definha, até não restar nada senão a voz. Achei que o «Ecologia» podia ser só isto, é tremendo! Mais tarde compareceu à escrita uma solução formal, aqueles títulos que são eles próprios eco de outras partes do texto. Agarrei isso porque me fazia sentir que as palavras andavam em ricochete no espaço do romance. Finalmente, assumi que todas estas coisas estavam no mapa e de alguma forma interligadas e, chegando à recta final do livro, apareceram os cadernos de estudo dos ecos. Era uma síntese disto tudo.
 
EP: Nem a imagem vale mil palavras face ao empobrecimento do léxico?
JB: A imagem para mim é outra forma de texto. Não vale mais palavras nem menos palavras, é outra coisa. Palavra e imagem complementam-se, expandem-se, anulam-se, digladiam-se ou casam-se, depende, mas estão em relação. Talvez por isso nunca resisto em ter imagens nos meus romances, porque essa relação me fascina, sempre me fascinou. Às vezes olho para imagens como se fossem palavras alinhadas numa frase, e às vezes tento ler um poema e só vejo uma imagem.
Sobre o empobrecimento do léxico, não sei se o tenho como pressuposto. O que me interessou foi a maleabilidade das linguagens. Qualquer idioma está em permanente mutação, todos os dias morre uma palavra, todos os dias deve nascer uma palavra nova. Qualquer idioma é corrompido e enaltecido constantemente no linguajar de uma criança, de um estrangeiro – ou de um poeta, para esse efeito. Não sei se isso tudo resulta necessariamente num empobrecimento. É um estar sempre em jogo, e é bonito que o seja. Como em qualquer jogo, às vezes questionam-se as regras. Ou seja, mais do que um afunilamento das linguagens, o que vejo é um afunilamento das ideias, uma perversa monocultura da mente que espelha (ou é espelho de?) a monocultura empresarial – e voltamos ao mercado.
 
EP: Pagar para falar?  Pagar para respirar?
JB: Para existir, para ter voz, para pisar essa areia, para mergulhar nesse mar. O mito do crescimento ilimitado, como forma do mundo querer ser, precisa que o mercado gere e invente novos mercados, e se aproprie de lugares que até ali não eram vistos como mercado. Falar, respirar... o que este livro pergunta é se ainda existe alguma coisa para lá dos limites do mercado.
 
EP: Mas mesmo que não se pague para falar, o que cada um diz já não tem um preço?  Um homem livre é um homem pobre e só?
JB: Oscar Wilde dizia que um cínico é aquele que sabe o preço de tudo mas não sabe o valor de nada. É uma excelente formulação, sobretudo se pensarmos nela agora, reflectida numa sociedade de mercado onde é possível atribuir um preço a tudo e a todos, pessoas, corpos, transações e tempo. As palavras têm valor, aliás, valores, plural; mesmo quando não têm um preço. E em paralelo a tudo isto (mas não independentemente) há um estado generalizado de depressão, que a meu ver resulta de uma grande confusão na esfera do valor, da atribuição de valor, do ordenamento das nossas prioridades de vida. O que eu quis com «Ecologia» foi justapor estas coisas, estas formas de sugerir valor, e relacioná-las.
 
EP: O silêncio é a sexta feira negra das bolsas das linguagens? Interessa ao mercado que se promova a cacofonia e o psitacismo? Para criar medos, ansiedades, mecanismos de validação e imitação, para que homens e mulheres não saibam quem são e alguém fale por eles?
JB:  É um dos paradoxos do nosso tempo. Se por um lado não podemos nunca esquecer que o silêncio, o não ter voz, não ter representação, é como não ter agência, é não existir politicamente; por outro lado, a cacofonia e as plataformas falsamente democráticas são uma forma de nos exaurir, de nos distrair e nos desviar de uma mobilização efectiva. Pertinente (penso muito na pertinência). Andamos todos muito indignados, mas é uma indignação que não gera indign/ação, que não resulta em protesto, exigência, ocupação e mudança. E isso está ligado à forma como hoje cada um de nós chega a ter voz, e como escolhe usá-la. Está ligado às redes sociais - estamos cansados de o debater - mas também a narrativas que nos são incutidas na publicidade e outros instrumentos pró-consumo de que somos todos únicos e especiais e que tudo o quisermos é possível (desde que gere consumo, lá está). Felizmente existem outras coisas a acontecer: a greve climática estudantil, por exemplo, tem sido para mim uma imensa fonte de esperança. A 15 de Março estive com aqueles miúdos na rua e percebi que tudo aquilo passou por grupos de Facebook e de WhatsApp, mas que estes foram somente um meio. O fim cumpriu-se: estavam na rua, eram muitos, bem organizados, e a exigir aos adultos consciência e mudança. E ainda não pararam, soube outro dia que planeiam outra para 24 de Maio. A internet uniu-os e não os dispersou. É possível!
Mas voltando à contradição presente no livro: o silêncio é um instrumento de opressão, mas o seu oposto também. Além disso, o silêncio aparece no livro como forma de atenção consagrada ao que nos rodeia. Estamos tão ocupados a expressar que não podemos ouvir. É a ideia que se nos calássemos chegariam ao discurso alguns interlocutores novos. Não-humanos.
 
EP: A pertinência de “Ecologia” resulta: “Só confiais no dinheiro? E se as palavras tivessem um preço?”  Haveria mais responsabilidade e consciência sobre o que se diz? Em caso de escassez, os povos comprariam mais dicionários? Estou a lembrar-me do recente caso da corrida dos Portugueses às bombas de gasolina…
JB: No livro também se enumeram as consequências positivas do mercado da linguagem. Alguns exemplos: as pessoas param para pensar no uso e valor da linguagem; dão um passo para fora de si próprias e apercebem-se que não são o que pensam, e como as palavras estão cerzidas ao tecido do nosso pensar; recuperam-se línguas mortas e artificiais; protegem-se idiomas em extinção.
O exercício de dar valor ao que tomamos como garantido pode ser feito em relação a tudo no nosso quotidiano, da água potável que sai da torneira, ao «Bom Dia» que deixamos no café, à gasolina com que enchemos o tanque do carro. Num planeta com recursos finitos e alguns ameaçados, nunca é em vão fazer imaginar como seria se algumas destas coisas desaparecessem. Teria sido bom que tivéssemos aproveitado a greve e a corrida às bombas de gasolina para debatermos alternativas aos combustíveis fósseis, e a forma como a cidade está organizada em torno do carro. Na realidade, fomos sujeitos a 2 ou 3 dias de choque, e o facto de ter sido temporário fez com que a maioria não levasse aquilo a sério. No livro o choque é permanente, é uma mudança de paradigma. Mas o exercício de imaginação começa da mesma forma para os dois, ficção e realidade, temporário e permanente.
 
EP: Ecologia é um fresco da contemporaneidade. Uma distopia em constante actualização como a versão de um programa de computador. A Joana teve uma imensa coragem e honestidade intelectual de ficcionar o estado geral de um mundo a caminhar para o abismo. É esse um dos papéis da escrita? Alertar para os abandonos, para as instrumentalizações e para a perda de um horizonte humano em que a comunicação tornou-se um luxo?
JB: É um dos papéis da escrita, pode ser. Aquilo que me motivou a escrever este livro esta bem explícito no seu título. Depois o livro tem diversas camadas, diferentes histórias de vida, múltiplas perspectivas. Não sou eu quem determina os alertas que ele contém, é o leitor. Eu olhei para o mundo à minha volta - e escrevi.
 
EP: Orwell e Huxley reflectiram sobre o poder da palavra em algumas das suas obras. A Joana colocou-as a render. Há sempre uma ideologia para cada tempo? Um vocabulário para cada espaço de poder?
JB: Sim, ambos trabalharam a questão da linguagem ao serviço do poder e da ideologia. No livro falo um bocadinho da Novilingua de Orwell, mas há também o seu ensaio «Politics and the English Language» (de 1946) em que dá muitos exemplos da experiência quotidiana do inglês ao serviço dos interesses políticos de então. Esse também foi uma tema muito estudado no trauma póstumo do Holocausto, a forma como novas palavras e novas formas de falar geraram aquele perverso consenso. Aliás, é todo um capítulo de «Ecologia» que foi cortado. Há que confessar que eu passo mais tempo a cortar que a escrever. Muita coisa ficou de fora deste livro, uma delas foi a parte em que me debruçava nos diários de Victor Kemplerer. Este homem existiu, foi um judeu alemão que sobreviveu ao Holocausto graças a ser casado com Eva, ariana. Antes da ascensão Nazi era professor de Literatura e ao longo da guerra, manteve umas “Notas de um Filólogo” onde registava as mil formas como os Nazis se apropriaram do alemão e o puseram ao serviço da ideologia. É um trabalho espantoso. São coisas aparentemente simples, como as pessoas terem substituído a saudação “Guten Tag” por “Heil Hitler”... Simples, mas significativas. Depreciaram palavras como inteligência, cepticismo, ou ponderação, em favor de outras como crença, submissão, ataque, agressão... Dizer que alguém é um fanático (der Fanatiker) ou um seguidor (Gefolgschaft) era elogioso. O prefixo Groß-, de grande, era aplicado a tudo, assim como Volk- (povo, como no famoso Volkswagen, o carro do povo). Entre muitas outras ocorrências de engrandecimento, exacerbação e hipérbole. Estas ainda são fáceis de reconhecer hoje nos diferentes discursos políticos, a par com os eufemismos. Por exemplo, eu acho que «aquecimento global» nos serve muito pouco. É ameno e remete para férias de verão. Devíamos falar disto com um termo muito mais duro, muito mais catastrofista, muito mais urgente e assustador. A nossa linguagem quotidiana é um sem fim de eufemismos que mascaram os assuntos mais delicados. Aliás, fiz esse apanhado para o livro (p. 376). 
 
EP: A linguagem não é um disfarce para o estado geral de abandono afectivo a que as pessoas foram relegadas? Não como consumidores ou ególatras, mas como seres humanos dotados de sensibilidade e carentes de empatia?
JB: A questão da solidão é muito próxima a tudo isto que temos estado a discutir, e se calhar não é mais protagonista neste livro simplesmente porque já é um livro com tantos protagonistas. Mas está lá. Pelo menos está lá na medida em que eu penso muito nisso, no paradoxo desta híper-inter-ligação uns aos outros, que nos deixa afinal tão isolados.
Vários estudos têm vindo a alertar para a forma como a vida mediada por ecrãs trunca o desenvolvimento da empatia e altera os ciclos de atenção. O instrumento muda a mão que o manipula, os ecrãs mudam a nossa forma de olhar, é um facto. Mas não esqueçamos: essas mudanças também trarão coisas boas. Vamos perder capacidades e ganhar outras. O que a mim me complica é a velocidade a que tudo isto acontece. Será que é possível um debate crítico e profundo acerca de todas estas novidades tecnológicas, se estamos sempre com o pé no acelerador, e avançamos com este espírito acrítico? Não se trata de abolir os instrumentos nem de deitar fora possibilidades, é só perceber se usamos os instrumentos ou se os instrumentos nos usam a nós.
​

EP: Muito obrigado.
 
 
 

CONVERSA COM LUÍS FILIPE SARMENTO 

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Foto de José Lorvão
Luís Filipe Sarmento (LFS) é escritor, tradutor e realizador. A conversa que se segue resulta de um afável contributo que deu à Estante do Porteiro (EP).
 
 
EP: Os símbolos e os conceitos diluem-se, confrontam-se ou complementam-se?
LFS: Os símbolos representam ou tentam representar coisas na sua ausência e exprimem emoções, são ferramentas de ficção, podem revelar ou ocultar segredos, são protagonistas da imaginação e convidam-nos a entrar no universo do incompreensível, do que é desconhecido, de tudo o que se nos apresenta como infinito. Os conceitos definem ou caracterizam coisas, são ideias, pensamentos, estruturas que podem servir-se de símbolos, complementando-se. Não creio que se diluam ou se confrontem quando de símbolo e conceito falamos. Talvez possamos entender como escalas do olhar.
 
EP:Os algoritmos são alquímicos? São eficazes na cartografia dos estados de alma?
LFS: Entendo a sua pergunta no sentido de que a alquimia se sustentasse num conjunto de regras e práticas para a resolução da transmutação de um metal noutro ou, na espagíria, para retirar de uma planta o seu valor essencial ou, simbolicamente, o seu ouro. Mas não creio que os algoritmos sejam aplicados à alquimia que hoje em dia é resgatada como metáfora dos chamados estados de alma. O algoritmo é um método de resolução de problemas, mas não é um laboratório. É também falível, donde qualquer cartografia, que se quer exacta, ficaria exposta ao perigo do erro e tratando-se da alma, que em si é um mistério, daria certamente lugar a equívocos angustiantes.     
 
EP: O excesso de estímulos tornou o homem um ser em permanente estado de ansiedade? É a nova peste negra ou é um “espectro radioactivo”, invisível a todos?
LFS: O homem viveu sempre em permanente estado de ansiedade e rodeado por um infindável número de estímulos, alimentados pela curiosidade, que o levou da caverna à exploração dos céus. Vivemos cercados por ecrãs, no seio de parques tecnológicos, que nos estimulam a um consumo desenfreado de «gadgets». Nunca como hoje fomos tão consumidores do efémero, tão produtores de lixo. Num dos meus livros sublinho que nesta liturgia celebra-se o presente e a identidade como expressão de uma vontade aparentemente própria e liberta de anátemas; valoriza-se o que é novo numa representação «vintage», a dessacralização do acesso, a afirmação do indivíduo que se perde em si e ignora o valor solidário da vida. A ignorância e a falácia surgem como elementos estruturantes da cultura do engano, da promoção da miséria, do desconhecimento de si. Resultado dos mercados que fabricam diferenças, o homem é uma curiosidade de repetições semióticas. Uma novidade do passado.    
 
 EP: Uma caneta e um bloco de papel são instrumentos contra a vertigem dos dias? Permitem desenrolar o tempo ao ritmo dos batimentos cardíacos? Ou o homem viciou-se no resultado e na velocidade?
LFS: Estamos encarcerados na velocidade e vivemos de resultados prematuros que muitas vezes descambam na miséria de si. Os media da hipermodernidade, através da criação das suas imagens-velocidade, das suas imagens excessivas e violentas, impõem comportamentos, isolando quem resiste. Se, por um lado, o aparente objectivo é a estandardização dos comportamentos, por outro, é a morte da crítica o que mais interessa aos «capones» que hoje controlam as políticas ocidentais. Ao inscrever-se no registo do espectacular, da moda feérica, os medias valorizam a propaganda do luxo, do divertimento vazio, contra a implementação do conhecimento e do saber cujos valores representam o seu principal inimigo. A megadiversidade da informação e a sua meteórica velocidade induz que se tem acesso a uma liberdade de escolha nunca vista, a uma autonomia libertadora que se reflecte na ilusão de se ter uma opinião própria. Nada mais falacioso. Essa megadiversidade é constituída por elementos de formatação estanque do indivíduo, levando-o a escolhas sem opção, criando à superfície da consciência o paradoxo de quem pensa que está a escolher o que na realidade lhe está a ser imposto. O debate deixa de ser democrático porque a crítica é silenciada através da sua morte prematura. Os media só dão acesso às vozes do dono. E da uniformização dos comportamentos, que representa a primeira fase do ataque à cidadania, passa-se à uniformização das convicções em falsas opiniões que dão a entender que há liberdade de pensamento quando na realidade o que há é o seu estrangulamento. A hipermodernidade está a conduzir-nos a um niilismo totalitário. Quando se exacerba o individualismo está a capturar-se o indivíduo solidário, a conduzir a humanidade para um beco sem saída. O futuro tornou-se curto, a esperança precária, a ilusão efémera, com a criação perversa de crises que nos lançam na mais repugnante miséria. Não há espaço para a contemplação, somos sugados pela vertigem dos imediatismos que nos sufoca. O capitalismo financeiro não vê para além do minuto. O refrão da rentabilidade, do crescimento a qualquer preço e da urgência sustentam um plano infindável de «reformas» até à exaustão dos povos para que a debilidade da luta deixe o campo aberto à vilipendiação do planeta. Trump é o paradigma.
 
EP: A poesia permite reencontrar o que de mais ancestral existe no homem face à emergência da sociedade tecnológica?
LFS: Há um regresso tímido à poesia. Ela permite a questão. Escrevemos para saber quem somos. Com quem comunicamos. A emergência da sociedade tecnológica, ao contrário do seu programa, faz com que se liberte uma nova poesia como reagente à ditadura do vazio. A consciência de futuro apela aos poetas para um movimento de mudança que altere este paradigma. Por outro lado, a luta contra este estado a que os Estados chegaram levam os poetas a uma obrigação ética de lutarem com todas as ferramentas que a hipermodernidade criou para os derrotar. O tempo que nos toca é para ser vivido e não escoado. Tudo é urgente quando se esquece o que é importante. Neste sentido, a poesia pode desencadear uma luta de consciência contra todos aqueles que programam holocaustos sociais no tempo. Ao banalizar-se a mudança como estigma da hipermodernidade produtiva e consumista, está a vulgarizar-se a violência como estigma da mudança. É contra esta agressão sobre si-mesmo que o poeta se deve convocar.  
 
EP: A sua obra literária sugere poderosas imagens. Existe alguma influência do realizador? Ou o poeta prefere quebrar as regras de quem o dirige?...
LFS: Creio que é exactamente o contrário. O poeta influencia o realizador. Quebrar as regras é dar o passo em frente, inequívoco, contra quem o quer dirigir. Mas aceito-me como alguém que faz literatura sustentado na cultura cinematográfica e no que ela sugere. A minha literatura é feita de sequências de planos, é um filme de ideias onde o real está implícito no que se sugere. Programo os meus livros como um guião e elaboro os meus guiões como um poema. O que está entre o princípio e o fim é a navegação no seio do temporal que estimula por vezes a deriva por vezes a condução do leme. Mas devo dizer que a deriva e o caos me estimulam mais do que o conforto banal. A literatura liberta-me o sentido de aventura sem regras nem bloqueios e muito menos a vassalagem a modismos episódicos. A escrita não é um sofrimento, mas o prazer de quem se aproxima por sedução do mistério.  
 
EP: A consciência é uma rede de impulsos eléctricos. Basta cortar a cabeça e tudo acaba?... Os cientistas deveriam dialogar mais com os alquimistas ou com os poetas?...
LFS: Creio que já não há alquimistas. E se alguns há cristalizaram-se na ideia romântica do velho alquimista. A alquimia, hoje, é sugerida como metáfora poética. Há uns anos, li com bastante prazer um livro que se anunciava como a arte antecipa a ciência. Trata-se da obra de Jonah Lehrer, Proust Era Um Neurocientista. O jovem cientista, a propósito das suas experiências em laboratório, dizia a certa altura que o romancista previra as suas experiências. Dizia Lehrer que «Proust e a neurociência partilhavam uma visão de modo como a nossa memória funciona. Se ouvíssemos atentamente, estavam na realidade a dizer a mesma coisa». É um livro que aborda uma temática interessante e onde conta histórias de artistas e poetas que anteciparam descobertas da neurociência. As criações artísticas eram actos exploratórios, uma maneira de entrar nos mistérios que não conseguiam compreender. E o diálogo que propõe é que «a ciência seja vista através da óptica da arte e a arte interpretada à luz da ciência» porque «a experiência e o poema completam-se mutuamente».    
 
EP: A ignorância e o medo são as armas do poder. Como nos libertamos da ignorância, do medo, do poder e dos universos distópicos que os mesmos construem?...
LFS: Lendo. Não se deixando reduzir como receptor sem reacção ao que nos querem impor através dos media fraudulentos. Não deixar que se reduza o objecto cultural à imagem carnavalesca e colorida do facilitismo medíocre onde as vendas se transmutam em espectáculo de palcos viciados. Combater através do consumo de cultura a burla que surge como primeira figura de um vaudeville que consome milhões na ecranização dos enganos diários. Talvez um regresso ao livro ajudasse a recriar a massa crítica tão ausente, hoje, da prática diária. Só através da leitura e do conhecimento é que podemos fugir à farsa, ao embuste, que a maquinaria publicitária produz para que se assegure a lotação esgotada de um espectáculo de supérfluos. Descobrir o que nos comove e alimenta através dos livros, do teatro, do cinema, das artes plásticas, do bailado, da música. Redescobrirmo-nos como seres sensíveis ao belo.
 
EP: Como vê o futuro face ao que conhecemos hoje, sobretudo no campo político e no dialogo entre as múltiplas culturas espalhadas pelo globo?
LFS: Tenho esperança nas novas gerações, num novo olhar e práticas que regenere o planeta. Tenho esperança na derrota das cleptocracias. Mas o regresso das extremas-direitas sustentadas em populismos resultantes da estratégia neoliberal que lançou os povos para a mais infame das misérias é uma questão que está na ordem do dia e que devia convocar as populações para lutar contra esta peste social e não se deixar seduzir por ela. Caso contrário, continuaremos a assistir impotentes à espectacularização dos negócios mais obscuros e à consequente corrupção dos seres. Quando chegamos a um tempo em que se comercializam emoções, se transaccionam imagens-lixo, em que o prazer pornográfico ganha estatuto artístico numa orgia abjecta que dilacera e confunde não podemos esperar que, sem um regresso ao confronto ideológico, à luta por uma ética que nos comprometa num diálogo que preserve a sobrevivência do ser humano, os actuais protagonistas da destruição desistam da sua ganância ainda que comprometa a subsistência dos seus próprios filhos. As actuais políticas promovidas pelos neoliberais conduziram à necessidade de alimentar a ambição desmedida dos seus sargentos o que tritura e triturará as proximidades, as cumplicidades, os afectos genuínos e não os comerciáveis e sustentará inevitavelmente o culto da traição. Vivemos a obra ao negro quando necessitamos de lutar por sublimar a grande obra da humanidade: a paz e a solidariedade entre os homens. Caso contrário, seremos brevemente tratados como escória a abater. 
 
EP: Muito obrigado, Luís
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CONVERSA COM RENATO FILIPE CARDOSO

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Foto de Pedro Teixeira Neves
 Renato Filipe Cardoso (RFC) é escritor, poeta, dizedor de Poesia, apresentador e locutor. Uma voz única. A conversa que se segue resultou de um afável contributo que deu à Estante do Porteiro (EP).
 
EP: Para os crentes, Cristo curou pela palavra e foi crucificado. Que doença civilizacional a sociedade padece em que a palavra é frequentemente desvalorizada, alterada e manipulada?
 
RFC: Ignorância militante ‒ uma arma de destruição maciça.
Tendemos a preferir quem ilude com falácias, meias-verdades. Insistimos enfim em deixar-nos levar pelos falinhas-mansas, preterindo aquelas e aqueles que nos acicatam, desafiam, confrontam. É-nos mais cómodo acoitar os discursos que não requerem grande esforço nem nos desassossegam do que outros que poderão abalar as nossas convicções e, eventualmente, desestruturar o próprio sistema de crenças. Optamos, pois, livre e deliberadamente, pela preguiça e pela ignorância.
Nas retrógradas sociedades ditas modernas, nas actividades humanas desde a política à literatura, nos negócios desde a religião à publicidade, todos os obreiros conhecem e abusam desta proveitosa realidade ‒ o extenso manancial de ignorância serve-lhes os propósitos.
E tem sido esta ignorância militante a base que dá o flanco a praticamente todos os extremismos do Mundo. Hoje, a ignorância militante aumenta de dia para dia, não obstante haver cada vez mais informação e conhecimento disponíveis, graças à tecnologia. Em proporção directa, assistimos ao recrudescimento de extremismos, fascismos e fanatismos em nações ocidentais e alegadamente evoluídas onde não o prevíamos possível.
A título de exemplo (um dos tantos tristemente possíveis), em 2016 o senhor Temer nomeou para ministro da ciência, tecnologia e comunicações do Brasil um pastor da igreja universal do reino de deus, dona do partido PRB. Claro que um pastor falinhas-mansas dá um óptimo ministro da ciência, se quisermos ter uma ciência iurdinária que decerto se arreiga poderes para exorcizar os demónios corruptos que se apossam dos políticos. Felizmente, esta anedota só durou alguns dias. Mas é sintomático...
 
EP: É preciso uma boa injecção de poesia para levantar os cadáveres adiados que somos?
 
RFC: Nasce-se sozinho, morre-se sozinho. O tempo que aproxima estes dois instantes de inevitabilidade, como singelamente escreveu num poema o argentino Roberto Juarroz, pode ser "uma flor". No decorrer do ramerrame quase sempre previsível da vida, cabe-nos fruir a beleza, criar beleza, partilhar beleza. Ser, enfim, beleza.
Nem toda a gente terá de gostar de Poesia, naturalmente. Mas a Poesia não só nasce da beleza, enquanto exercício espiritual e de reflexão, livre-arbítrio, como contém beleza e conhecimento, enquanto estética artística pluriforme que radica no individual e no colectivo, no material e no intangível.
A Poesia oferece, quanto a mim, o condão intáctil de proporcionar uma espiritualidade salutar, não-viciosa, além de nos trazer à senda daquilo que de mais belo pode haver e, porventura, mais difícil de alcançar: tocar o Outro e ser tocado pelo Outro.
Porque é transversal e comum a todas as artes, porque persiste nos interstícios de cada microfragmento da vida, humana e mundana, transcendente e espiritual, a Poesia é o meu único deus. Se outros quiserem devotar-se a este deus, tenho fé, Senhor, que deles será o reino dos céus.
 
EP: As palavras belas deviam ter uma projecção maior? Como corrigimos essa falha orgânica do nosso aparelho vocal?
 
RFC: Todas as palavras são belas. Porque cumprem o propósito de permitirem materializar o pensamento, comunicar intenções, desejos, angústias, contar uma estória, gerar serendipidade... São porventura a mais eficaz forma de sincronizar a nossa solidão.
Por vezes, contudo, usamo-las com más intenções, fora do contexto que lhes é primacial e justo ou deslocadas, a nosso bel-prazer, em prol de objectivos tantas vezes pouco nobres ou louváveis. Quando utilizadas nesta dimensão pejorativa, todas as palavras podem ser nefastas e horríveis. A palavra amor pode matar ou provocar um terramoto; pelo contrário, a palavra faca pode salvar uma vida ou mostrar o caminho para casa a alguém perdido. O inferno não está nas palavras. Está em nós. E essa "falha" não é espoletada no aparelho vocal, mas sim na consciência desaparelhada.
 
EP: A música surgiu para corrigir essa falha na criação? Uma compensação pelo preço que temos de pagar ao “porteiro do céu ou do inferno”?
 
RFC: A música não "surgiu". Sempre existiu. Faz parte e está presente em toda a natureza terrestre ‒ na "criação", se preferires este termo a remeter para a mais bem-sucedida edição de contos de fadas de sempre. Os músicos limitam-se a transpor para sons organizados, reproduzir ou reinventar, de formas mais ou menos elaboradas, mais ou menos eruditas, com maior ou menor genialidade, toda a plêiade sonora que coexiste nas estruturas atómicas dos universos. Há, no entanto, muitos sons inaudíveis ao comum dos ouvidos humanos. Os mais deslumbrantes músicos são capazes de intuir estes sons e dar-lhes um corpo.
Quanto ao "porteiro do céu ou do inferno", a última vez que passei nas imediações desses dois locais de diversão nocturna, e diurna, aquilo estava tudo às moscas. Acho que o rapaz foi  despedido e, por ser precário a recibos verdes (deus é um empreendedor de escrúpulos duvidosos), nem sequer foi indemnizado.
 
EP: O "purgatório” como mistura de estilos é um bom palco para a cena musical contemporânea? A fusão de estilos e tendências exigem mais do ouvido?
 
RFC: Sim e não. A fusão de géneros musicais requer uma competência extra da parte dos músicos ou bandas, na medida em que pressupõe um conhecimento apurado de cada quadrante que se pretende mesclar. Por outras palavras, não passa pela cabeça de um chef misturar nos seus pratos ingredientes cujo paladar desconhece.
Mas para responder a esta pergunta é preciso retroceder mais de um século:
Por um lado, a crescente miscigenação e multiculturalidade em cada geografia do Mundo acarreta um efeito similar para a música, cujos fazedores não são vasos estanques, antes permeáveis às díspares linguagens e tendências que os rodeiam. Por outro, as redes tecnológicas de informação disseminam e democratizam o conhecimento, porquanto hoje é possível viajar no tempo e descobrir todas as sonoridades e criações musicais gravadas desde que, em 1857, Edouard-Leon Scott inventou o fonoautógrafo. Finalmente, desde há cerca de um século que a música se propaga numa escala crescentemente global, donde se depreende que não subsiste qualquer género ou expressão musical imune aos múltiplos processos de fusão. Aliás, cada vez menos, como é óbvio.
Vejamos: o blues, rapaz nascido e criado nos estados do extremo sul dos Estados Unidos no último quarto do século XIX, provém das tradições musicais africanas e toma corpo como estética de expressão oral nos contextos de trabalho afro-americanos, mormente de escravatura. Rapidamente, o blues torna-se poliédrico tanto na forma como na intenção: a uma voz ou em coro, exclusivamente vocal ou instrumentado, ritmo de trabalho ou balada de amor, gemido de opressão (grito camufladamente politizado até) ou cântico espiritual. E é a partir do blues que toda a música contemporânea se desdobra: o jazz, cujas origens remontam a finais do mesmo século na Nova Orleães marcadamente negra, deriva directamente destas cultura e criatividade populares, às quais acopla inicialmente segmentos da instrumentação das bandas marciais ou filarmónicas, de reportório e trajadura clássicos. Com o jazz geram-se novas abordagens de polirritmia, formas sincopadas, de improvisação e de liberdade criativa que derivam no swing, no ragtime, etc., etc.. Daí advém o rock'n'roll que, no final dos anos 40 e início dos 50, se afirma como predominante linguagem pop ‒ popular, portanto ‒ beneficiando de, teoricamente, requerer um menor conhecimento musical e instrumental da parte dos seus intérpretes, mas também ser menos, digamos, exigente para o ouvido do público, logo, mais imediato.
A propósito, uma velha anedota conta que num concerto de jazz uma banda toca em palco 3.000 acordes para um público de 3 pessoas, enquanto num concerto de rock uma banda toca 3 acordes para um público de 3.000 pessoas.
Com, e desde, a geração espontânea do rock, a música tem encontrado mais e mais caminhos para a autossimplificação, que redundam no sem-número de géneros e subgéneros que actualmente podem ser catalogados. Aos quais acrescem, naturalmente, as raízes musicais ancestrais ou tradicionais associadas à ritualidade de cada geografia e cada povo, o folclore, que sempre existiu, subsistiu e evoluiu até, transformando-se a par e passo, com as mutações musicais globais.
Na década de 60 inicia-se a última grande revolução musical, a tecnológica ou electrónica, que se perpetua ainda. Caracteriza-se sobretudo por democratizar, tornar acessíveis, todas as linguagens musicais, tornando-as simultaneamente mais fáceis de operar. O grande boom da música pop nos anos 80, que tanto lixo deu à luz entre o que de bom se criou, os subgéneros do funk, do house, do reggae, do tecnho, do rap, do hip-hop, do drum'n'bass e tantos, tantos outros, são, na sua essência ou génese, formas tendencialmente mais simplistas e simplificadas de expressão musical. E, repara, digo expressão e não criação musical, porque diversas vezes, demasiadas até, a acepção de criação não se aplica àquilo que estas práticas musicais emanam.
Estas simplificação e popularização, que desde os anos 50 e 60 se afirmam gradualmente nas lides musicais, são as que arrepiam caminho para a fundação de uma indústria musical massificada.
Resumindo, toda a música actual é conceptualmente de fusão. E, respondendo mais directamente à questão, a fusão de géneros e subgéneros que alguns artistas intentam, de forma mais ou menos experimental, pode resultar com harmonia e inteligência. Todavia, também pode, e assim é as mais das vezes, resultar numa aberração despropositada e sem nexo. Alimentando uma falsa noção de originalidade.
Regresso à metáfora inicial: embora tenha um extenso armazém de ingredientes à disposição um bom chef não os despeja todos na sopa, sem critério nem sentido de causalidade. Cria uma base e vai, pouco a pouco, experimentando este ou aquele novo ingrediente, testando o sabor e a consequência.
Enquanto ouvintes consumidores de produtos musicais, se exercermos o nosso consumo de forma inteligente, atenta e informada, quando expostos a uma «sopa» de mau gosto, que tem sal em excesso para disfarçar o paladar pobre ou a falta de substâncias nutrientes, ou em que ingredientes abstrusos se acotovelam para conquistar tempo de antena nas papilas gustativas, de imediato nos apercebemos do embuste, do artifício, da malfeitoria. Mas para isso necessário seria que fôssemos consumidores inteligentes. E estes são uma ínfima minoria, na música como em tudo o resto.
Para que o mashup se inscreva enquanto arte, tem de partir de um acto de criação inteligente e conter um apelo intrínseco à inteligência de quem escuta. E não ser, apenas, ginástica aeróbica de arrumos.
Pessoalmente, gosto de géneros variados, diria que de quase todos um tanto. E, não sendo um puritano e tentando sempre degustar um tanto de tudo sem preconceito, acredito que nos trabalhos de fusão, para fazerem sentido, a soma terá de ser sempre superior à mera soma das partes. Boa música de fusão, sim. Música de confusão, dispenso.
(E por falar em confusão, preciso de água, que estou a falar de mais...)
 
EP: Numa sociedade doente e infeliz, a tecnologia é a anestesia perfeita na criação de mundos alados e egocêntricos? A solidão é um pecado computacional sem redenção?
 
RFC: Raio de pergunta! Vamos por partes: sociedade doente, sim; infeliz não, porque sucessivamente inventa e reúne panaceias para se anestesiar, capítulo no qual a tecnologia se destaca. Mundos alados e egocêntricos sempre os houve, nas mais diversas esferas e dimensões.
Poderemos questionar, alternativamente, se a tecnologia não veio permitir uma espécie de câmara de descompressão, ou válvula de escape, para esses egocentrismos e solipcismos se desvanecerem? Será que estas personalidades, antepondo vida real versus mundo virtual, não são, seriam, mais nefastas na vida real?
Assim como assim, a tecnologia, apesar de massificada, proporciona a cada um o direito à escolha: onde clicar; o que evitar e passar adiante; o que ver e não ver; o que consumir e não consumir; onde, quando, como e com quem interagir. A tecnologia não é o diabo. O diabo somos nós e as escolhas que fazemos. Leio frequentemente pessoas indignadas a dizerem mal do facebook. Onde? No facebook.
O verdadeiro problema é a nossa crescente tendência autofágica para nos cingirmos e esgotarmos nas escolhas que fazemos em sede tecnológica. Clicar em "gosto" numa iniciativa da Amnistia Internacional não salva vidas. Partilhar um vídeo da Quercus ou da Greenpeace não reduz a nossa pegada ecológica. Colocar uma fotografia de um sem-abrigo não nos isenta do dever de contribuir para debelar as dimensões social, económica e até cultural do problema, não altera uma vírgula às políticas cretinas vigentes. Adoptar o slogan "je suis Charlie" não nos torna menos preconceituosos ou mais tolerantes ‒ regra geral, somo-lo pouquíssimo quando são os nossos calos, e não os de outros, a serem pisados.
De igual modo, ter 5.000 amigos numa rede social não extingue necessariamente a solidão de ninguém. Pode ser uma placenta comunicacional se se está fisicamente isolado, distante, ou não dispomos de mobilidade. Pode mitigar o isolamento porque nos põe em contacto. Mas a solidão não é um sentimento ou estado absoluto, não varia em função de se estar em contacto nem do número de amigos. A solidão, tal como a felicidade, nunca depende daquilo que se tem. Mas sim, e sempre, daquilo que se quer ter.
Se encontramos on-line as pessoas com quem queremos estar e partilhar a vida, ou segmentos da vida, pois então a tecnologia pode quebrar e diminuir a solidão, com certeza. Se nos abstemos de estar com elas de corpo presente e nos encolhemos ou limitamos na faceta virtual, é porque provavelmente cremos que nos sentimos bem assim, fisicamente sós. Todavia, e provavelmente também, estaremos a enredar-nos num logro voluntário. Sem o contacto visual e físico do Outro, na minha opinião padeceremos sempre de algum tipo de incompletude, mesmo que não consigamos identificá-la. Pode ser uma faceta de solidão.
A questão é se, apesar desta coexistência tecnológica, perseveramos em estar presencialmente com aqueles que amamos e que nos importam enquanto seres afectivos e emocionais com quem queremos comungar a existência; se nos forçamos a lutar pela companhia de quem queremos ou se nos resignamos ao que é fácil e imediato, que anestesia mas, no cômputo final, não satisfaz o nosso desejo extrínseco de plenitude?
Pelo facilitismo imediatista de decisões e acções servidas em formato de botão, a tecnologia insiste em fazer-nos sentir autossuficientes em relação a quase tudo. E esta falácia pode bem assumir o aspecto de uma perversão do conceito de super-homem de Nietschze, traduzida como individualismo. Tende, inevitavelmente, a contagiar as emoções, os sentimentos e os afectos.
Portanto, o "pecado computacional" não é a solidão, mas sim o individualismo. E, completando o ciclo deste raciocínio, a culpa nunca será da tecnologia. E sim das escolhas.
 
EP: As imagens em cascata, em interminável fluxo são bordéis conceptuais?
 
RFC: Pensar é estar doente dos olhos, escreveu o Caeiro. Portanto, gostava de cascatas. Eu, nem de cascatas de imagens nem de bordéis conceptuais. Dos reais menos ainda, porque as escolhas que proporcionam dependem da exploração e objectificação de pessoas que muitas vezes não têm qualquer escolha. E eu defendo, indefectível, a escolha. A alternativa, como única forma sensível, inteligente e digna de realizar competentemente a vida.
Porquanto, uma vez mais, e sabendo que me repito, haja multiplicidade a rodos que cada um tratará de usufruir, assim o queira e podendo munir-se da informação ao dispor a que queira aceder, de traçar e exercer as suas opções.
 
EP: As palavras abrem a alma, mas são as livrarias que fecham. Daqui a vinte anos será o livro tradicional um objecto de culto? Ou precisaremos da terapia de choque da imagem que nunca se cansa?
 
RFC: Não sei. Eu amo os livros. O objecto, o cheiro do papel, o contacto material, a fruição. E ainda se vendem muitos livros físicos, apesar de geralmente serem as obras e os autores mais merdosos aqueles que granjeiam maior sucesso. Assim acontece também com jornais, rádios, televisões e quaisquer outros produtos comunicacionais ‒ quanto mais insultam o público com a péssima qualidade do serviço que prestam, maior audiência têm. O que atesta sobretudo o carácter acéfalo e o vírus de imbecilidade que grassa na audiência, já que o comportamento dos empresários é expectável: produzir o mau é mais barato que produzir o bom e contribui para gerar mais-valias colaterais, comerciais e políticas.
Mas, enfim, a educação, em concreto a educação para o discernimento lúcido, é a lacuna maior da democracia, de todas as democracias. Porque todas as democracias carregam à ilharga, nos mecanismos de controlo ao dispor de quem exerce o poder, a própria anulação. É mais fácil seduzir ou ludibriar incautos e energúmenos do que aqueloutros que procuram informação e esclarecimento. É mais fácil conquistar o voto de quem menospreza aquilo que o voto significa e pouco exige dos eleitos. É mais fácil vender um hambúrger mcdonalds, uma pizza embalada ou uma coca-cola se as pessoas não perceberem que irão ingerir lixo alimentar. O que, reiteradamente ao longo dos tempos, se inscreve na origem de uma conspiração tácita, silenciosa e sem-rosto, para coarctar as ferramentas que permitiriam às pessoas interpretar correctamente o rol de ingredientes de cada produto, de cada acção consequente das suas vidas. O estupor da publicidade e do marketing levam a melhor sobre a informação e a inteligência.
As livrarias fecham pelo mesmo motivo. Porque as boas, as que são um estandarte de quimera de livreiros que gostam e sabem de livros, tal como uma peixeira conhece o peixe ou um alfaiate cria um fato por medida, acenam com um apelo à informação e à inteligência e não com a luxúria de vil néon da publicidade e do marketing. E pensar, sabemo-lo estatisticamente, dá imenso trabalho.
No caso particular dos portugueses, existe qualquer coisa de masoquismo estupidificado: em hordas, compram maioritariamente em livrarias de centros comerciais e em fnacs (que, não sendo livrarias, são grandes bazares que mercam livros, aos quais já só faltam secções de cabeleireiro, talho e pouco mais), porque apreciam sobremaneira saber que o seu dinheirinho será acumulado apenas por alguns senhores, altos timoneiros dos grandes grupos financeiros. Imagine-se! Se comprassem em pequenas livrarias os livreiros malfadados (malfodidos?, vou registar o neologismo) ainda mantinham portas abertas, tinham lucro ou se calhar até abriam novas livrarias. Oh subversão! Oh topete! Oh audácia! Aonde é que isto iria parar? Nem haveria espaço para encavalitar novos restaurantes gourmet ou pardieiros airbnb.
Sarcasmo à parte, a ênfase recai invariavelmente sobre as escolhas que fazemos. Ou que nos abstemos de fazer. Quem quer livrarias de qualidade, tem de, deve, contribuir para que elas subsistam. Quem desconhece a importância destas instituições está, citando o «meu» Sérgio Godinho, "à espera do comboio na paragem do autocarro" com a sua plácida estupidez.
Não me atrevo a qualquer vaticínio para daqui a 20 anos. Porém, com ou sem livros ‒ e desejo, evidentemente, que os haja ‒ espero que sejamos menos estúpidos.
 
EP: Descansar os olhos faria bem à sociedade aditivada como o sal inserido na máquina de lavar faz bem à louça?
 
RFC: O sal da máquina-de-lavar, verdade seja dita, corrói gradualmente os vidrados. Se estamos em mood de partir a louça toda, pode ser um bom prelúdio.
Quanto a descansar os olhos de quando em vez, com certeza faria bem à sociedade. Exemplar e sublimemente, assim no-lo demonstrou João César Monteiro com o filme "Branca de Neve". Um statement artístico genial. A Manuela Ferreira Leite também quis rodar a película Suspensão da Democracia por 6 Meses, com argumento da própria autoria, mas não logrou obter financiamento ‒ uma enorme injustiça!
 
EP: O preconceito, a injustiça, o medo e a ignorância sobrevivem a todos os avanços tecnológicos, sistemas políticos e convenções sociais. É preciso combatê-los com a Voz de todos?
 
RFC: Não só sobrevivem como também se transformam, adaptam, assumem novas formas e rostos, contextos, expressões e linguagens que, por nos serem tão circunvizinhas, cada vez mais perto de nós, muitas vezes não damos por elas, não as identificamos nem distinguimos. E, se não tivermos cuidado, acabamos por adoptar algumas e levá-las para casa, de braço dado. O preconceito, a injustiça, o medo, a ignorância e sobretudo a intolerância, em que todos os anteriores se congregam e cristalizam, exigem-nos um exercício de permanente vigília, de incessante alerta. Com proactividade, claro está, mas com inteligência e discernimento, porque a prática de linchamentos está em rápida ascenção para se tornar um desporto à escala mundial. Mesmo perante a face hipotética do mais hediondo dos crimes, a tolerância e o discernimento são as melhores armas da justiça. Sob pena de nos transformarmos no monstro que queremos destruir.
Quanto a combater com a voz de todos, quero acreditar que quando a voz de todos estiver disponível para o combate não haverá já nada a combater.
 
EP: É preferível uma voz rouca, cansada e dorida do que um silêncio colaboracionista ou evasivo?
 
RFC: O silêncio faz-nos falta. Amiúde, tanta!... Colaborar é preciso. Cada vez mais. E, de quando em vez, sabe bem evadirmo-nos. Tudo depende do que se silencia. Tudo depende daquilo com que se colabora. Tudo depende do que fugimos.
E se, algumas vezes, devemos estar prontos a batermo-nos por algo que valha a pena, pelo quanto nos define enquanto seres pensantes e agentes de Liberdade, noutras, as batalhas mais difíceis são aquelas que conseguimos evitar.
A voz será sempre uma força imprescindível. A minha, de tanto falar, começa sim a ficar rouca e cansada.
 
EP: Muito Obrigado, Renato.

CONVERSA COM RITA NABAIS E JOANA RAIMUNDO 

Rita Nabais ( RN ) e Joana Raimundo ( JR) são autoras da “ A História do Rock para Pais Fanáticos e Filhos com Punkada” publicada pela Editora Escafandro . A conversa que se segue resultou de um ritmado contributo que deram à Estante do Porteiro (EP).
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 EP: Como surgiu a ideia de criar este livro ilustrado?

RN: A ideia surgiu por ser uma apaixonada por música – a música ocupa uma parte significativa da minha vida - e pelo facto de ter uma pequena editora que facilita o processo. A descoberta de um vazio deste género de livro também contribuiu claramente.

JR: Pela audição mas também para saber mais sobre os próprios artistas e bandas.

EP: A linguagem directa e as ilustrações apelativas pretendem aguçar a curiosidade pela audição dos artistas retratados?
RN: Pretendem aguçar a curiosidade, primordialmente pela leitura do próprio livro e, claro, levá-las à audição dos temas sugeridos pelo livro (e outros, se correr bem). Para mim era essencial que o livro fosse divertido, houve um esforço adicional nesse sentido.

EP: Uma imagem vale mil palavras, mas um acorde poderá despertar o gosto pela boa música, entenda-se como pauta vibratória do corpo e da alma?
RN: Claro que sim. O efeito da música nos nossos sentidos e no nosso corpo está entranhado no nosso código genético. É algo primitivo que nos acompanha desde o dia em que nascemos até ao da nossa morte. Evitando propositadamente discutir o bom ou o mau gosto, tal como em todas as artes, na música, quanto mais conhecemos, mais exigentes nos tornamos. Um acorde ou um conjunto de acordes pode despertar o gosto pela música.

EP: A diversidade de géneros, correntes, tendências e “punkadas” retratados no vosso livro teve como objectivo alertar que toda a música “ rock” recebeu influências, bem como influencia o que hoje se produz?
RN: O livro tenta explicar isso mesmo. O Rock é um termo muito vago, encerra imensos significados. Derivam dele inúmeros géneros e subgéneros. Para um verdadeiro apaixonado por música, em geral, e rock, em particular, não teria sentido falar estritamente de rock. Poderei ter ido longe demais ao incluir a Soul, Pop, eletrónica, etc., mas trata-se de uma obra eclética à semelhança da sua autora e, como foi devidamente explicado o porquê da inclusão desses géneros, acaba por se tornar um trabalho mais completo e enriquecedor.

JR: Sim, a ideia é mostrar que o rock, como todos os outros géneros, não vem do nada e não é isolado do resto do mundo. A música desenvolve-se segundo uma miríade de fatores que vão desde géneros musicais que se cruzam, novas descobertas tecnológicas e até mesmo o contexto social / económico / político dos artistas.

EP: As professoras de educação musical utilizarão para além dos tradicionais xilofones, pautas e vozes, mais ou menos afinadas, a vossa história do rock?
RN: Isso seria um sonho! Se os professores entenderem que o livro pode ser uma mais-valia na sala de aula, melhor para os alunos, e um orgulho para nós.

EP: E nos inúmeros festivais musicais de verão, consideram que os adultos fanáticos poderão aliviar, nos intervalos dos concertos, as suas” punkadas” pela leitura atenta do vosso livro?
RN: Podem sim. E isso aconteceu mesmo, no Festival Paredes de Coura.

JR:​ Esperamos que sim!

 EP: Crianças, adultos…E os idosos também cabem no vosso livro, sobretudo quando muitos deles são mais velhos que as primeiras bandas / cantores que surgiram após a segunda guerra mundial?

RN: Claro que sim. Embora seja um livro infantil, foi feito para ser apreciado por todas as idades e para ser partilhado entre pais e filhos e avós e netos. Os apreciadores de música, nomeadamente de Rock, não se distinguem pela idade mas sim pelo gosto musical.

JR: Toda a gente é bem vinda à descoberta deste livro. Mesmo sendo mais velhos que as primeiras bandas, muitas pessoas não ficaram indiferentes ao nascimento e progresso deste género. Além disso, para os que lhe passaram ao lado, esta pode ser uma boa oportunidade para aprenderem um pouco sobre o género e se relacionarem com a família que o viveu mais atentamente. Nunca é tarde para se descobrir o rock

EP: Será a história do rock, o livro de cabeceira de muitas gerações? Em vez de livros de príncipes e princesas, os adultos do futuro mostrarão aos netos o vosso livro?

RN: Não é necessário ir ao futuro, quando era miúda os meus príncipes e princesas já eram músicos. A Barbie, a Madonna; o Ken, o David Bowie! Este livro é potencialmente alternativo, será sempre um produto de nicho.

JR: Esperamos que sim! Não há razão para que os príncipes e princesas não possam partilhar a prateleira com a realeza do rock.

EP: Já estão a pensar no volume II da história do rock, para aumentar o saber enciclopédico de miúdos e graúdos? Ou outros projectos estão a ser pensados?

RN: História do Rock será editada na Suécia no final do mês de Setembro. Vai ter o prefácio de Dregen, uma das maiores estrelas de Rock daquele país. Queremos levar este livro o mais longe possível. Estamos a terminar o processo de tradução e revisão para inglês. Contará com mais bandas e novas ilustrações. Depois se verá, continuarei o meu trabalho como professora e editora. A escrita logo se vê.
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EP: Muito Obrigado, Rita e Joana

Créditos Fotográficos: Rita Nabais e Joana Raimundo



CONVERSA COM MANUEL JORGE MARMELO

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Créditos Fotográficos: Manuel Jorge Marmelo.

Manuel Jorge Marmelo (MJM) é jornalista e escritor premiado. A conversa que se segue resultou de um amável contributo que deu à Estante do Porteiro (EP).

EP: Uma mentira mil vezes repetida a que verdade conduz?
MJM: O senhor Goebbels, suposto inventor da frase, faleceu como se sabe: escondido num bunker, suicidando-se com cianeto depois de matar a família inteira. Não me atrevendo a prescrever publicamente um fim semelhante para os praticantes actuais da repetição mentirosa, da doutora Cristas ao senhor Trump, passando pelo senhor Kim, tenho a certeza de que, de uma forma ou de outra, hão-de falecer também. Sendo esta a única coisa que é certa e verdadeira para todos, parece-me que é mais simpático ser recordado pela bondade do que enquanto facínora, aldrabão contumaz, vigarista, inadimplente ou energúmeno.

EP: Os factos tornaram-se matérias porosas na justiça e no jornalismo?
MJM: Os factos são velharias amáveis, mas cada vez menos estimadas ou respeitadas, aqui ou ali. Estou mesmo convencido de que já foram substituídas pelo click e pelo like.

EP: Face ao estado do mundo, nomeadamente com a errância dos lideres, a anestesia dos privilegiados e o desespero dos excluídos, não estaremos a despertar o primata da”irrealpolitik”? Não poderá um erro “pavloviano” conduzir ao abismo?
MJM: O risco é grande. Mas, se me ponho a pensar na qualidade dos imbecis que têm o dedo no botão do abismo, sou capaz de não conseguir dormir de noite.

EP: Durante muito tempo, infelizmente, queimaram-se livros e grande parte das populações ou não sabiam ler ou não tinham acesso aos livros. Agora, que existem milhares de livros e de autores, são poucos os que são leitores regulares. Como analisa este paradoxo?
MJM: A humanidade é paradoxal. Ao mesmo tempo que parece caminhar para algum lado, com algum sentido e objetivo, vai criando infindáveis multidões de comedores de lixo, comummente designados como “consumidores”. Poderia dedicar-me a analisar o fenómeno à luz dos considerandos da pergunta anterior, mas seria uma perda de tempo. Os alienados não estão interessados em ler esta entrevista nem em pensar sobre este assunto.

EP: Não será a busca do sucesso, a todo o custo, o primeiro sinal de fracasso de um escritor? Ou o artista não terá na morte um lugar bem mais seguro?
MJM: Não sou a pessoa mais indicada para responder a esta questão. Não espero falecer nos tempos mais próximos.

EP: As editoras precisariam de ler a obra de Karl Marx ou a Bíblia Cristã face à disparidade entre o número de horas gastas por um escritor e o que lhe pagam por força dos direitos de autor?
MJM: Não sei. Sou completamente desprovido de senso empresarial, mas, como em outras coisas na vida, só posso tentar resolver o problema pegando-lhe pela ponta que tenho mais à mão de semear. Pela parte que me toca, e tendo constatado o assinalável insucesso comercial do meu trabalho literário, entendi que, ao fim de vinte anos de esforço, me devo abster de produzir um bem que interessa a tão poucos clientes.

EP: Ou tudo se tornou um negócio, em que o escritor tem de seduzir o leitor como se de uma mulher com manual de instruções se tratasse?
MJM: Também não sei. É-me simpática a ideia de ser lido e acrescentado pelas leituras alheias, caso contrário nunca teria tentado publicar o que escrevi. Mas não posso enfiar os livros na goela de ninguém. Escrevo porque escrever me completa e me dá prazer e, ainda que me penitencie de tê-lo feito tão excessivamente, fi-lo com as melhores intenções, sem cuidar de enganar ninguém.

EP: Um computador, o deep blue, derrotou Kasparov. Será o escritor oprimido pelo algoritmo ou libertar-se-á, para sempre, dos números das vendas?
MJM: Apenas posso elucubrar sobre o meu caso, e já o fiz.

EP: Ainda existe espaço para a liberdade artística ou o cânone estabelece as fronteiras entre o que é literatura e o que não é?
MJM: A liberdade criativa é total. Ninguém me impede de escrever apenas aquilo que quero, quando quero e porque me apetece muito (desde que não espere viver disso). Não me inquietam o cânone, o mercado, as editoras ou a crítica. Questão bem diferente é aquela que diz respeito à possibilidade de querer ou poder publicar o que escrevo, e de ser lido por quinze ou por quinze mil pessoas.

EP: Os poetas e os filósofos deveriam governar o mundo em vez dos contabilistas e dos financeiros? Ou acha que tudo ficaria na mesma?
MJM: O mundo está cheio de poetas que batem na mãe e de filósofos que estacionam em segunda fila. Um filho da puta é um filho da puta, independentemente da atividade que pratica ou das habilitações literárias.
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EP: Muito obrigado, Manuel.
 
 

CONVERSA COM HUGO XAVIER

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Fotografia de Paulo Seabra
               
Hugo Xavier (HX) é editor na E-Primatur e na BookBuilders e Coordenador na Imprensa da Universidade de Lisboa. A conversa que se segue resultou de um generoso contributo que deu à Estante do Porteiro (EP).
 
EP: Como analisa o mercado editorial em Portugal?
HX: À semelhança da maior parte dos mercados editoriais do mundo de língua inglesa que marcam as correntes e modos de operar dos mercados modernos (com algumas excepções), o nosso mercado aproxima-se cada vez mais de um modelo americano de não – identificação (o leitor não identifica marcas / editoras porque pode encontrar de tudo na maior parte das editoras) e de cópia de conceitos (a lógica do “se isto resultou para alguém também vai resultar para mim”).
A lógica feroz das novidades que mal param nas bancadas por um ou dois meses antes de desaparecerem para a prateleira, de lombada, ou devolvidas para não mais regressarem (não vos aconteceu já perguntarem por um livro e dizerem-vos que está esgotado? Desconfiem: não é economicamente viável voltar a encomendar livros) determina o mercado transformando-o numa roda-viva em que o real valor não consegue sequer impor-se – muito menos chegar ao seu público. Daí a impossibilidade de impor novos autores ou autores desconhecidos mas que mereceriam outras oportunidades: não há tempo para os dar a conhecer ao público.
Todo o mercado é pois um mercado de excessos para um produto que precisa de tempo: ler é por natureza um processo demorado: também o negócio dos livros o deveria ser. Excesso de oferta, excesso de oferta do mesmo tipo de produtos e não de alternativas e diversidade. Excesso de barulho que não corresponde à qualidade.
Muita falta de profissionalismo e muita falta de estratégias para angariar novos leitores: que deveria ser a preocupação maior de todo o sector do livro.

EP: Publica-se mais e lê-se menos do que há cem anos? É um paradoxo ou é um sinal dos tempos face ao avanço da cultura da imagem?
HX: Percentualmente creio que se lê precisamente o mesmo – o que é assustador tendo em conta que, por exemplo na Islândia em que se lia o mesmo que em Portugal no ano de 1905, hoje 99% da população lê livros regularmente. Em Portugal a percentagem (provavelmente exagerada) é quase a mesma de 1905.
Quanto à pergunta em si: é um sinal de que, ao contrário dos países escandinavos – bem mais pobres do que Portugal em 1905, a ausência de uma revolução no ensino com aposta na qualidade não aconteceu por cá.

EP: O que leva um editor a publicar no século XXI? É uma questão de resistência, ousadia ou sobrevivência?
HX: Uma mistura das três. Há também o gosto de partilhar histórias e um espírito de missão social/ educacional.

EP: Que critérios distinguem um bom e um mau livro visto da perspectiva do editor?
HX: Critérios que não contam para o público: detalhes que só os editores detectam. Mas todos os (bons) editores são grandes leitores e esses são os critérios que contam: critérios de escolha: um editor é um leitor que assume um papel de evangelizador.
Claro que entre os editores há coisas evidentes: fazer um livro bem feito custa praticamente o mesmo que fazer um livro “às três pancadas”, então porque não fazê-lo bem feito?

EP: O leitor cada vez mais é chamado ao processo de edição?
HX: Na maior parte dos casos essa é uma ideia tão falaciosa como acreditar que os sistemas de atendimento telefónico das grandes empresas é “personalizado”.
No caso das nossas duas chancelas é mais do que evidente: funcionamos com sugestões dos leitores, dos nossos colaboradores (tradutores, revisores, autores) e dos padrinhos e amigos do projecto. Mas é dos poucos casos em que o leitor é arremessado para o processo de decisão.

EP: A E-Primatur tem sido inovadora no âmbito editorial. São restauradores da história ao publicar escritores e obras esquecidas? Ou também publicam novos autores que fogem às”regras do mercado”?
HX: Digo-o há muitos anos: não é possível economicamente aos pequenos editores publicar novos autores (pelo menos nacionais) sem que se lhes esteja a fazer uma injustiça: promover novos autores é fácil a quem tem uma máquina de marketing bem oleada e capacidade de promover autores no mercado. Os pequenos editores podem ter essa vontade e fazer um esforço mas o mercado (livreiros que decidem compras por algoritmos em programas informáticos) não se compadece das boas intenções.
A lógica da E-Primatur e da BookBuilders é publicar livros relevantes nas suas épocas como agora e livros actuais que, por uma mesma relevância, mereçam permanecer.

EP: Ray Bradbury  escreveu o distópico fahrenheit 451 , mas é em Portugal que a floresta arde e as livrarias tradicionais fecham.  Quais as consequências destes fenómenos lusitanos? O papel vai extinguir-se?
HX: E ser substituído por quê? Pelo livro electrónico que nunca pegou (nem lá fora nem cá dentro)? Mais facilmente desaparece a leitura: o nosso mundo da rapidez que leva a que as pessoas apenas leiam os títulos das notícias como no Facebook a informação que partilham tira o tempo para o lazer e para a degustação. Quer-se tudo rápido e sem ponderação – é o paraíso para quem quer governar sem ser posto em causa.
Quanto às livrarias: a maior parte não soube acompanhar os tempos nem nunca conseguiu reagir às mudanças de paradigma. No começo dos anos 2000 houve dois caminhos possíveis para as livrarias tradicionais: desenvolver novos modelos orientados para nichos e para o mercado local interagindo com as comunidades para ficarem próximas dos leitores (e assumindo critérios de selecção) ou unirem-se numa estratégia comum criando mecanismos centralizados para vários serviços mas mantendo a independência da escolha e oferta. Uma percentagem ínfima conseguiu a primeira alternativa; a segunda ruiu por mesquinhices. A resistência insensata consistiu em tentar concorrer com grandes cadeias com a mesma oferta destas – uma impossibilidade física e económica. Em boa parte causada pela Lei do Preço Fixo.

EP: Algum ser humano geneticamente modificado e tecnologicamente induzido poderá ler toda a “biblioteca de Borges”?
HX: Felizmente não. E se o conseguisse, como Alexandre sentar-se-ia e choraria por não haver mais mundos que conquistar.

EP: O melhor livro ainda é aquele que não foi editado?
HX: Pior: os muitos que não foram editados. Mas para os leitores não é o mesmo?

EP: Muito obrigado, Hugo
HX: Eu é que agradeço a simpatia.
 
 
 
 
 
 

​CONVERSA COM RUI CARVALHO

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Foto de Rui Carvalho
​       Rui Carvalho (RC) estudou filosofia e é escritor. “Desertos”, publicado pela Gato Bravo Editora, é o seu primeiro livro publicado. A conversa que se segue resulta de um afável contributo que deu à Estante do Porteiro (EP).
 
            EP: “Desertos“ é um livro emblema dos tempos que vivemos. A abundância de estímulos, a banalidade das relações (pela bulimia afectiva) e a anestesia crítica são sinais de um “estado geral de estupidez”?
            RC: Todas as coisas desembocam na finitude. Se todas as coisas desembocam na finitude o deserto é constitutivo no tempo. Assim sendo, não existirão propriamente períodos de tempo “desertos” e outros períodos mais preenchidos.
            De qualquer modo, há uma correlação directa entre a passagem do tempo e a desertificação. “Desertos” é um livro acerca da passagem do tempo, do modo como essa passagem desertifica não só as paisagens exteriores mas também as paisagens interiores. Nesse sentido, “Desertos” não é propriamente um emblema dos tempos que vivemos, corresponde sim a uma correlação simbólica com o correr do tempo em si. Com o correr do tempo vamos perdendo coisas. Coisas e pessoas, o que é o mais importante. Por vezes temos a impressão que perdemos umas e ganhamos outras. Essa sensação dá-nos algum sossego. Contudo, trata-se apenas de mais uma ilusão. Quando o tempo chega ao fim perdemos literalmente tudo, tornamo-nos edifícios ao abandono. A educação deveria de algum modo servir para possibilitar-nos essa convivência com o deserto, com o abandono. Mas a educação tornou-se apenas um mero engodo estatístico, um mero modo de nos levar a exercer-nos estatisticamente. Por outro lado, é evidente que a abundância de estímulos emperra o exercício da inteligência. Estamos cercados pelo ruído. Cercada pelo ruído a inteligência jamais germina. O silêncio e a solidão tornaram-se anátemas. Constituindo ambas condições indispensáveis ao germinar da inteligência e sendo-nos sonegadas, é inevitável que nos atolemos cada vez mais na estupidez. A eleição de crápulas como Trump e Bolsonaro constituem exemplos gritantes desse mesmo atolamento. Contudo, o principal problema é que quanto um crápula é eleito para governar um país com milhões de eleitores, há sempre milhões de estúpidos que o elegeram.
            Os ciclos repetem-se. E. Talvez o vazio seja eterno. 
 
            EP: O que te levou a publicar estes “desertos“ com as fotos magníficas do António Caeiro? Criar novas paisagens na erosão dos tempos?
            RC: A fotografia constitui um símbolo da ruína. Todas as fotografias são ruínas, correspondem a evidências do abandono. Mesmo as fotos dos momentos felizes sinalizam uma impossibilidade, a impossibilidade de a eles regressarmos. Nesse sentido, sendo um espelhamento da nossa situação de finitude, todo o livro repercute um estado de erosão. A erosão do tempo não se circunscreve à matéria. Não são apenas os lugares que se tornam outros. Nós próprios nos vamos transformando até ao irreconhecimento. É esse instante de irreconhecimento que está na origem do espanto filosófico. Como é possível o sendo daquilo que “é”? Como é possível mantermos uma mesma identidade no decurso da nossa existência se estamos constantemente a desembocar num outro de nós mesmos?
            As fotografias do António mostram a ruína no seu modo mais cru. Só perante a evidência da ruína há possibilidade de nos reedificarmos. Todas as fotos já existiam antes da criação dos textos. Os textos que compõem o livro foram criados para estas fotos e perderiam significado sem elas.
            A reedificação perante a ruína, é esse sentido da vida, o percurso de Sísifo.
 
            EP: A escrita é um exercício de sobrevivência nestes tempos de imagens –vómito, gravatas girafa e penteados esquisitos?...
            RC: Há uma luta que não é de agora. Uma luta constante entre o homem qualitativo e o homem meramente quantitativo. Para aquele que escreve a escrita é sempre um exercício de sobrevivência. É necessário sobrevir a estupidez. Talvez o exercício artístico constitua o único modo de fazê-lo. Neste caso, a luta é um processo dialéctico opondo a estupidez à inteligência. Depois, há uma espécie de sumo que sai. Há algo imaterial que perpassa tudo isto. Talvez possamos chamar-lhe espirito. O espirito é o sumo que resulta desse contínuo processo de luta entre a inteligência e a estupidez. É necessário lutar contra o “vómito, as gravatas girafa e os penteados esquisitos.” Trump, Bolsonaro e o outro senhor inglês são representações simbólicas da forma grotesca do homem quantitativo. A luta deve ser constante. Essa é uma exigência do espírito.
 
            EP: Há 200 mil anos que o Sapiens não cresce mentalmente para outros ecossistemas. A biotecnologia, a genética e a computação levarão o homem a descobrir novos sentidos? Ou as miragens, as alucinações colectivas e as ilusões individuais continuarão a marcar o nosso horizonte existencial?
            RC: Acho que a tua pergunta se relaciona com a questão filosófica essencial, a busca pela verdade, a busca pelo verdadeiro sentido das coisas. O problema é saber se a busca pela verdade, se a busca pelo verdadeiro sentido das coisas corresponde ou não ao estágio de uma doença. Se estivermos condenados à ilusão, como parece acontecer, não será a busca pela verdade  o sintoma de uma doença vital?
            Talvez haja uma altura em que isto se resolva. Talvez a biotecnologia e a genética possam transformar o humano numa outra coisa. Talvez os problemas que hoje nos assolam se tornem irrelevantes. Talvez a doença e a morte possam ser de algum modo colmatadas através da tecnologia. Mas mesmo que nos tornássemos imortais não deixaríamos jamais de estar perante problemas. Os problemas é que seriam outros. Viver para sempre não corresponderia a uma espécie de tédio para sempre?
 
            EP:  O homem está condenado à falha. O que leva a que a maioria não queira encarar a temática da mortalidade? A tecnologia tornou-se criadora de parques de diversão para enganar a condição humana? Que diriam os filósofos e os escritores, como Camus, por exemplo, desta encruzilhada?
            RC: Sísifo somos nós. Transportando a rocha até ao cume da montanha para depois vê-la rolar montanha abaixo. Uma tarefa que se repete para sempre. O humano encontra-se em situação e a situação do humano corresponde ao encruzilhamento no absurdo. Além de encruzilhados no absurdo, estamos sitiados perante a finitude. Quando nos é dado escolher entre uma verdade terrifica e uma ilusão tranquilizante, qual é a “verdade” que escolhemos? A ideologia capitalista cria uma situação de neblina que nos impede de ver o que quer que seja. É “normal” que, entre uma verdade terrífica e a anestesia, as pessoas escolham ser anestesiadas. Somos cegos. Se os cegos tradicionais sofrem de cegueira escura, nós sofremos de cegueira branca. O espirito consumista corresponde a uma espécie de seguir sempre em frente. Nesse seguir sempre em frente não há possibilidade de tropeço. Na aquisição há sempre esperança. Onde há sempre esperança não há lugar para o instante do tropeço. Depois do último modelo Samsung Galaxy virá um outro, e assim sucessivamente. O homem contemporâneo é o homem sem qualidades, e o homem sem qualidades é uma criança cega brincando num parque de diversões.
            Ao que me parece, Camus repetiria sempre o melhor parágrafo alguma vez escrito: “Existe apenas um único problema filosófico realmente sério: o suicídio. Julgar se a vida vale ou não a pena ser vivida significa responder à questão fundamental da filosofia.”
 
            EP: Nestes novos anos vinte, existe esperança para que o deserto acabe? Ou é sempre a miragem?… A mesma história de sempre como o filme “ Casablanca” ilustra?
            RC: Sendo constitutivo no tempo, o deserto não acaba enquanto o tempo não acabar. Somos nós que temos que nos adaptar ao deserto e não o deserto a ter que adaptar-se a nós. Rick será sempre o cais que vê Ilsa partir.
 
            EP: Que projectos tens e que queiras partilhar com a estante para além do livro  manifesto ”desertos”?
            RC: Tenho uma série de outros livros. Uns já escritos e outros que se vão escrevendo.
            EP: Muito obrigado.

CONVERSA COM RUI CATALÃO

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FOTO DE ALÍPIO PADILHA
Rui Catalão (RC) é actor, dramaturgo e encenador. A conversa que se segue resultou de um generoso contributo que deu à Estante do Porteiro (EP).
 
EP: Qual o momento fundador em que descobriu que queria seguir as artes de palco?

RC: Foi quando comecei a trabalhar com o João Fiadeiro em 1999. Ele na altura estava a desenvolver uma metodologia de trabalho, a composição em tempo real, e fiquei fascinado com essa ferramenta. Não se tratava de preparar algo para depois representar, mas de criar as condições para fazer uma pesquisa em palco, à frente do público. Na primeira peça em que trabalhámos juntos, “O que eu sou não fui sozinho”, ele convidou-me para o apoiar na dramaturgia, mas acabei por entrar em palco. Tudo partia de uma conversa informal, em que eu explorava as minhas memórias, e as coisas que partilhava com o público não eram preparadas, aconteciam ao vivo, em tempo real. O próprio exercício da tomada de consciência acontecia em palco, já durante os espectáculos, e a partir daí exploravam-se áreas ainda mais estranhas, como o processo do inconsciente a levar-nos por caminhos em que eu nem fora do palco alguma vez me atrevi a ir. Para mim foi uma experiência perturbadora e surpreendente, mas que ao mesmo tempo me deixou muito curioso. Havia uma série de dimensões da minha psique, do meu corpo, da consciência ou falta dela que tinha da minha identidade e da minha imagem que eu desconhecia e que, em palco, perante um público, vinham à superfície. Durante esses três anos em que trabalhei com o Fiadeiro, fui convidado para trabalhar com um bailarino romeno, Manuel Pelmus. Trabalhei com ele e os seus bailarinos em Viena, Bucareste e Paris. Depois, quando voltei, fui convidado por outro coreógrafo, o Miguel Pereira. Então apercebi-me que estava a criar um enorme caixote do lixo de ideias que não estavam a ser exploradas. Foi quando decidi reciclar essas ideias e comecei a fazer o meu próprio trabalho.

EP:Algum actor, realizador ou dramaturgo que o tenham influenciado no seu percurso criativo?

RC: Inicialmente foi mesmo só o Fiadeiro. Mas depois comecei a pensar como abordar o meu teatro.Tinha a ideia de que a principal matéria era para ser trabalhada ao vivo, recorrendo à memória do momento, ao instinto, à relação de partilha com o público, e como é que as pessoas muito concretas que estão à tua frente te vão condicionando. Mas isso tinha de ser preparado na mesma. Comecei então a estudar, de forma mais analítica, alguns artistas que sempre admirei:o trabalho de Kiarostami, na forma como manipula actores e não actores, dirigindo-os já à frente da câmara; o filme de Victor Erice “O sol do Marmeleiro”, sobre o pintor Antonio Lopez, e a forma como ele tenta acompanhar no processo de pintura o crescimento da árvore que lhe serve de modelo; os filmes de Ozu, por se concentrar no mesmo universo de personagens de subúrbio das minhas histórias;Nabokov e Proust, pelo trabalho sobre a memória a partir de associações e acasos; Mizoguchi, pela forma como explorava dramaticamente a composição cénica, as movimentações e a gestualidade no espaço; Pedro Cabrita Reis, pelo uso de materiais disponíveis, que se encontram ao acaso nos locais de trabalho, e que são reciclados para a cena. Finalmente, de todos os mais importantes: John Coltrane, Charles Mingus e Eric Dolphy. Partindo de frases muito simples, quase elementares, eles improvisam depois, explorando soluções formais, a memória da sua relação com a história da música, mas também a ideia de uma “escrita” que vive da espontaneidade do momento, e que também desenvolve os seus próprios temas, motivos, padrões, digressões, etc. Em cada trabalho concentro-me num diálogo com outros artistas e linguagens, mas seria saturante mencioná-los a todos. 

EP: Quais os projectos que neste momento está a trabalhar? E quais aqueles que mais gostou de criar e /ou participar?

RC: estou agora a preparar um monólogo com o Joãozinho da Costa, um intérprete com quem venho trabalhando há perto de 4 anos e que já entrou em outras quatro peças que fiz. Será um solo baseado nas suas experiências de vida, e em que eu lhe proponho a criação de frases coreográficas a partir de temas de jazz, nomeadamente do “Giant steps”, do Coltrane. O Joãozinho também deu passos gigantes. Primeiro porque é muito alto, tem quase 2 metros, e depois porque vem de muito longe, nasceu na Guiné, e já fez muitas coisas. 
As minhas peças partem sempre de motivações muito pessoais, e por isso são todas especiais para mim. Mas o solo “Dentro das palavras” (2010) foi a peça em que eu descobri o meu teatro, o meu estilo, as minhas ideias e caprichos. No que respeita a colaborações com outros artistas, recordo sempre com muito carinho “Untitled/Still Life”, com a Ana Borralho, o João Galante e o Cláudio da Silva. Esse trabalho resulta de uma herança de termos trabalhado juntos no “Existência” (2002), com o Fiadeiro, e é assim a nossa versão a 4 da composição em tempo real. É uma peça em que os intérpretes estão - como dizê-lo? - camuflados entre o público, e vão convidando as pessoas para uma sessão de fotografia. O espectáculo é a criação de um álbum de família, já que tudo o que vai acontecendo nos permite criar uma relação de proximidade com os espectadores.

EP: Como diagnostica o panorama das artes em Portugal?

RC: Não posso fazer um diagnóstico porque só consigo acompanhar algumas coisas, muito poucas. O meu trabalho absorve-me cada vez mais e não tenho uma perspectiva geral do que se passa à minha volta, que é muito. Sinto talvez que há demasiadas propostas para o público que existe, e para os recursos disponíveis. Há demasiados trabalhos a serem apresentados uma vez e depois a desaparecerem, sem que haja um público, um discurso crítico a fazer a sua digestão. A ter condições para avaliá-lo. Chegou se calhar a altura de as cidades investirem mais na manutenção e recuperação dos equipamentos existentes, e em financiarem programas que promovam não apenas a apresentação de espectáculos, mas também uma relação mais orgânica com o público, que envolva formação e participação em projectos artísticos. A sociedade moderna depende cada vez mais de soluções criativas, e isso não é um talento inato, é mesmo uma prática que se desenvolve, é um modo de nos relacionarmos com os problemas e oportunidades que se nos apresentam.
​

EP: Muito obrigado, Rui.
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​CONVERSA COM CALI BOREAZ

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Fotografia de Júlia Bicalho Mendes
Cali Boreaz (CB) é escritora e artista polivalente. A conversa que se segue resulta de um generoso contributo que deu à Estante do Porteiro (EP).
 
EP: Como surgiu o gosto pela literatura?
CB: Havia uma inclinação natural minha para ler, escrever... Uma atração constante pelos livros dos meus pais, pelos do meu avô. Lia tudo. E comecei a escrever diário e poemas desde os 6, 7 anos. Lá pelos 12 anos, o meu avô, que foi marinheiro e passou anos de insônia nas bibliotecas dos navios, introduziu-me no universo de Eça de Queirós e Camilo Castelo Branco. A partir daí não teve mais volta. 
 
EP: Quais os projectos que neste momento está envolvida?
CB: Neste momento, estou preparando a edição do meu segundo livro de poesia e a realização de uma peça de teatro que escrevi como adaptação do romance Karen, de Ana Teresa Pereira, vencedor do Prêmio Oceanos 2017.
 
EP: O seu instrumento de trabalho é a palavra, mas usa-a em diferentes plataformas multimédia? Que efeito a transfiguração da palavra tem na busca de novos sentidos e horizontes?
CB: A poesia é anterior ao poema e é mais espaçosa do que o poema. Gosto de complementar a palavra escrita com outras possibilidades de comunicação, dar-lhe voz, paisagem, textura, de modo a materializar de forma mais viva aquele momento inaugural em que a poesia aconteceu. Por isso, faço performance, crio videopoemas, podcast, e mantenho um trabalho de fusão da imagem com a palavra no instagram @caliboreaz. Minha casa virtual — assim chamo a este espaço, porque fui eu que o construí e eu que cuido — é caliboreaz.com
 
EP: Sentiu diferenças no uso da palavra entre o Brasil em Portugal? Não só de quem a quer agrilhoar , como quem a quer libertar?...
CB: Há um pensamento que me acompanha: Portugal é a poesia e o Brasil a licença poética. Isto pode ser uma metáfora ou não. Sinto o Brasil como uma expansão da língua — e isso certamente influenciou a minha escrita, na forma e no conteúdo (que na poesia se confundem).
 
EP:  O Brasil é mais aberto a novas abordagens da palavra? Ou o cânone, ou melhor, o “literariamente correcto “ também é autoreferencial?
CB: Acredito que sim. Ao ganhar mais espaço, mais veículos, a língua galga outros caminhos, alcança outros ângulos. “Literariamente correto” é uma expressão sem sentido para mim. Se é literário não pode ser correto. A literatura só acontece a partir de alguma subversão.
 
EP: Existirá alguma palavra jamais escutada , ou seja, algum sentimento ou estado de alma por descobrir, ou estaremos presos sempre aos limites das línguas/linguagens conhecidas?
CB: Deixo um texto do meu próximo livro, que parece ter sido escrito em resposta a esta pergunta:
em russo, há uma palavra específica para o afeto que se tem por alguém que se amou. em tcheco, há uma palavra para um certo tipo de angústia diante da própria mediocridade ou falta de habilidade (lembro de kundera falar dele). na escócia, parece que há uma palavra para o tique do lábio superior que indica a antecipação da alegria. em albanês, há alegres 17 e 27 palavras respectivamente para sobrancelhas e bigodes. em romeno, há sei lá quantas que significam, todas elas, neve, mas cada uma para especificar um certo tipo de neve, que por aqui (ao sol marinheiro da língua portuguesa) não distinguimos por desnecessidade. e se o russo olha para o amor antigo, veja bem: o japonês inventou uma palavra para um sentimento de pré-amor. em yagan, idioma indígena falado por um povo da tierra del fuego, mamihlapinatapai é aquele olhar trocado por duas pessoas quando ambas querem que a outra tome a iniciativa de fazer algo que ambas sabem que querem mas.
 
mas: o que é a coisa menos a palavra? a palavra menos a língua? isso que se percebe num repente e não tem esqueleto nem contorno para apoiar sua existência — não existindo, pode ainda resistir? se a língua nos funda a humanidade, e se há quem saiba que neve não é simplesmente neve, como amor não é simplesmente amor, assim como a saudade não é só uma falta, e calunga não é só saudade mas também abismo e deus... como posso eu dizer algo agora daqui de onde estou?
 
 
EP: Muito obrigado, Cali.

CONVERSA COM HELENA MENDES PEREIRA

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Fotografia de Catarina Martins
Helena Mendes Pereira (HMP) é curadora, formadora, consultora e investigadora em práticas artísticas e culturais contemporâneas. A conversa que se segue resultou de um precioso contributo que deu à Estante do Porteiro (EP).

EP: As cores e as formas das múltiplas imagens que invadem o quotidiano não permitem fixar o olhar? Enquanto curadora como lida com a disposição das obras de arte para superar as perplexidades e captar a atenção do observador?
HMP: Bom, em primeiro lugar, interessa dizer que, no meu caso concreto, a forma como tenho conduzido e conduzo a minha carreira nada tem que ver com qualquer tipo de exercício de catarse. O trabalho não é, para mim, nenhum tipo de compensação por alguma dimensão da minha vida que, eventualmente tenha falhado. Não é isso. Desempenho a minha atividade profissional, nas várias funções que vou acumulando, em diferentes instituições ou projetos, como se de uma missão se tratasse. Acredito que na cultura e na ação cultural como fatores de transformação dos indivíduos e das sociedades e que a educação estética e o contato com a arte ampliam as nossas possibilidades de leitura e apreensão do mundo, sendo fundamentais para o combate à ignorância e à intolerância. Neste sentido, tanto na minha atividade como curadora, como em funções letivas ou no exercício da escrita, o meu olhar oscila entre a concentração e a dispersão, no sentido multidisciplinar e das múltiplas possibilidades de promoção de diálogos, a partir do objeto artístico contemporâneo, sobre o mundo que nos rodeia. Preparar uma exposição, devolvendo-lhe o foco da pergunta é, neste sentido, uma oportunidade de cumprir a missão que é, no fundo, o motivo da minha existência terrena.

EP: Estaremos todos à espera de algo, como a mulher do quadro Western Motel de Edward Hooper? Perdidos em lugares estranhos e tempos acelerados?
HMP: Edward Hooper estará, provavelmente, entre os artistas que mais admiro e ainda que reconheça essa abnegação do ser humano em ser autor da sua própria história, eu não sou assim. Não espero nada. Uma das coisas que aprendi desde muito nova, ainda criança, foi a ir à frente, a ditar o caminho. Lembro-me que na minha escola primária havia uma pequena área ajardinada junto ao muro que rodeava o recreio e que eu e as minhas três amigas brincávamos muito às voltas por ali e que, já na altura, eu tinha a mania de ir à frente e ditar o caminho. Fui sempre assim e continuo a ser assim. O meu único desígnio foi sempre o da liberdade plena, e com a liberdade, nessa medida, vem sempre uma carrada de responsabilidade, mas eu não tenho, nem nunca tive medo de nada. Nunca quis um emprego, mas construir uma carreira. Aprendi muito cedo a não ter medo e a tomar as rédeas. Provavelmente, em contexto profissional, essa minha característica dificulta o trabalho dos outros comigo, não o nego, mas sou alguém com quem se pode sempre contar e que resolve. Nunca fiquei à espera de nada nem que ninguém decidisse nada por mim e no dia em que tiver que o fazer, provavelmente, uma parte de mim já terá morrido.

EP: Novos conceitos surgem todos os dias ou existe uma reinvenção do já feito e já visto? O digital é a matéria – prima primordial do milénio? Ou existe uma simbiose com o biológico e orgânico?
HMP: Existe cada vez mais uma simbiose de conceitos e formas de estar. Não vivemos sem tecnologia mas procuramos cada vez mais uma alimentação livre de corantes e conservantes e essa dimensão do comum e do quotidiano alastra-se a todas as ações humanas, inclusive à criação artística contemporânea. Sobre o novo… É difícil, na área artística, criar hoje algo 100% novo, nunca antes visto, pelo menos se não dispensamos alguma honestidade intelectual. Mas é possível reler ,no tempo e no espaço, o acumulado de experiências e de resultados dos que nos antecederam.

EP: A arte é uma forma de resistência e reflexão sobre os tempos algorítmicos que nos colonizam?
HMP: Arte é liberdade e ser livre é resistir. Não há arte sem liberdade e não há liberdade sem uma atitude de eterna resistência aos dogmas e aos preconceitos sociais.

EP: Poderá um andróide ser capaz, num futuro próximo, exibir os seus trabalhos artísticos na Galeria Shairart em Braga ou na Bienal Internacional de Arte de Cerveira?
HMP: Tenho dúvidas. A arte é humana e é o que nos distingue, a nós seres humanos, de todas as outras criaturas biológicas ou tecnológicas que habitam o planeta. Não tenho nenhum medo da tecnologia porque tenho muita fé nos homens e na força das relações exclusivamente humanas.

EP: Como é que tem sido trabalhar com os artistas emergentes? Quais as dificuldades que sentem?
HMP: Eu não trabalho só com artistas emergentes e muito menos gosto de rotular artistas como emergentes ou consagrados. Gosto, acima de tudo, de criar diálogos e promover cruzamentos geracionais que proporcionem a valorização de artistas com tempos de vida e experiências diferentes. E gosto de lançar nomes novos para o mercado, baralhar a roda e quebrar o lobby. Quando alguém decide dar os primeiros passos no mercado da arte e procura o meu apoio procuro, acima de tudo, incentivar à literacia. Por mais estranho que isso possa parecer,  muitos artistas (novos e menos novos)  não lêem, não vêem exposições, não frequentam teatros, nem se interessam por qualquer tipo de expressão cultural, muito menos têm noções genéricas de história, geografia ou política. Não fazem ideia nem onde fica o Guadiana, nem quais são as principais feiras e exposições de arte do mundo. Sem isso não há qualquer conselho prático que valha. Não se pode querer deixar uma pegada artística no mundo, sem conhecer o mundo.

EP: O público segue o gosto dos outros ou já se sente uma educação cultural e cívica mais acutilante e crítica?
HMP: Há cada vez mais estratégias de educação e mediação cultural a serem proactivamente implementadas em museus e outras instituições culturais. Contudo, estas revestem-se ainda de práticas ultrapassadas e não são, em muitos casos, pensadas para todos os tipos de públicos. Neste domínio, há um oceano a atravessar e não o atravessaremos com um barco a remos, como estamos a fazer neste momento. Existem públicos e  interesse dos públicos em compreender a arte contemporânea, mas é preciso que os agentes culturais, nas várias escalas de comunicação ajam com vontade e mantendo uma visão 360º.

EP: Existem espaços culturais suficientes no norte do País? Ou precisa o público de ser itinerante para desfrutar de espectáculos diversificados como em algumas cidades europeias culturalmente fortes? Existe uma rede de parceiros públicos e privados ou a escala não permite maior diversificação da oferta cultural?
HMP: Há oferta suficiente, equipamentos suficientes e estamos num ponto em que atingimos, a norte, diversidade e qualidade de ofertas de programação cultural. O urgente é organizá-las nos territórios e criar, para todos, oportunidades de comunicação e divulgação e, mais uma vez, é preciso não desistir da educação e mediação cultural. Não precisamos de mais, nem de melhor, de uma forma geral. Precisamos é que chegue a mais pessoas e que se vincule a estratégias de apoio à criação artística em território nacional.

EP: Na gestão cultural como se alia a escolha de espectáculos, eventos inovadores daquilo que as entidades públicas e privadas pretendem, muitas vezes movidas por interesses contrários à fruição cultural? …
HMP: Portugal tem neste momento três vícios narcísicos na despesa com cultura/entretenimento: as recriações históricas, as feiras de gastronomia e produtos locais e os títulos de “capital” de qualquer coisa. Parte da oferta cultural está politizada, poucos foram ainda os que perceberam que programar não é preencher a agenda e que esses grandes eventos (que derivam entre as recriações históricas de mau gosto, as feiras do fumeiro, as noites brancas e as capitais do pão-de-ló) não podem ser o único foco de ação nem de investimento público. A gestão cultural é uma disciplina complexa que implica, no seu exercício, que exista autonomia política dos agentes, leitura das características de cada território e estratégicas ajustadas aos contextos e aos objetivos. Infelizmente, muitos dos nossos políticos, em vez de apenas gerirem a causa política e munirem as equipas de profissionais adequados para cada função, aproveitam para promover as suas próprias feiras de vaidades e usar dinheiros públicos para a promoção de ações relacionadas com os seus gostos e lobbies e não com qualquer tipo de projeto âncora.

EP: A cultura sobreviverá aos destroços da ambição humana e destruição planetária que assistimos ou permitirá evitar catástrofes e proteger os mais pobres e excluídos?
HMP: A cultura e a Arte sobreviveram sempre e só elas podem reduzir o número de pobres e excluídos.

EP: Muito Obrigado, Helena.
 
 
 

CONVERSA COM JOANA COMPLETO

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Foto de Pedro Janeiro.
Joana Completo (JC) é Artista Plástica, Coreógrafa e Bailarina, Modelo e Música. Licenciada em Pintura pela Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa, Mestre em Ensino de Artes Visuais no 3º ciclo do Ensino Básico e Ensino Secundário pela Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias e Doutorada em Geometria pela Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa. É ainda Doutoranda em Artes Performativas e da Imagem em Movimento da Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa, da Faculdade de Letras, do Instituto de Ciências Sociais, do Instituto de Educação, da Escola Superior de Dança, da Escola Superior de Música de Lisboa, e da Escola Superior de Teatro e Cinema. A conversa que se segue resultou de um generoso contributo que deu à Estante do Porteiro (EP).
 
EP: O que atiça o processo criativo? A ferida, a falha ou a “centelha divina”?
JC: Sou uma artista multifacetada, nomeadamente Artista Plástica, Coreógrafa e Bailarina, Modelo e Música.
Nesta entrevista abordo dois dos meus mundos Artísticos, as Artes Plásticas e a Dança.
O que atiça o meu processo criativo é o que gira em torno do mesmo, nomeadamente o sonho, o surreal, a fantasia, um mundo mágico e utópico. Gosto de criar mundos estranhos, interligados com um imaginário que vive de experiências e memórias, onde aqui remeto à minha infância e realço o meu filme de eleição, nomeadamente “O Feiticeiro de Oz” (“Wizard of Oz”), e todo o imaginário existente neste. Destaco também o meu pintor favorito, o Salvador Dalí, pois tenho como influência as suas obras Surrealistas. A ferida e a falha fazem parte do processo criativo, tal como acontece com qualquer Artista, construir e desconstruir, criar e aperfeiçoar, é um processo que necessita de ser bem estruturado e com um fio condutor consistente, para que a obra de Arte possa nascer ou até renascer, uma “centelha divina” que tem como objetivo o crescimento Artístico, não só da obra como também do próprio Artista. Deste modo, nas minhas obras de Arte, sejam elas de Artes Plásticas ou de Dança, se hipoteticamente existir a “ferida” e a “falha”, ambas me perturbam, pois sou extremamente perfeccionista, contudo, sei que faz parte de um processo de aprendizagem, ninguém é perfeito, nem mesmo a criação ou o criador. Para mim todo o processo criativo é visto de forma positiva nas minhas obras, pois transmito através de pinceladas ou de movimentos de Dança o meu “eu” na sua forma mais pura.
 
EP: O Um corpo que não dança, somatiza?
JC: Dançar é uma forma de expressar através de movimentos os nossos sentimentos, as nossas emoções, o nosso estado de espírito, as nossas lágrimas e os nossos sorrisos. Somos “seres dançantes”, pois o nosso corpo está em constante movimento, mesmo em repouso nunca estamos parados, pois o ser humano é uma “máquina” em constante movimento interior e exterior, deste modo, somatizar é uma consequência do pensamento de quem desacredita na possibilidade de ser capaz de ultrapassar barreiras através dos gestos, quer seja em Dança ou não.
 
EP: A dança não verbaliza, mas transmite mais que mil palavras. Que poder mágico é esse?
JC: A Dança verbaliza através de movimentos simples, complexos, ou da mistura de ambos, pois o corpo flui e transporta com ele palavras que são lidas em forma de “texto” gestual. A Dança comunica de forma direta ou indireta, tudo depende do seu conteúdo e da mensagem que pretende transmitir, podendo haver diversas interpretações por parte do público, sendo que nem sempre a Dança tem como obrigação ser explícita mas sim “escondida” e única no “eu” dos coreógrafos e bailarinos. Cada movimento em Dança transporta e transmite o que de mais íntimo existe no nosso ser, sentimentos, emoções, estados de espirito, ou tão somente o “nada” que também nos contempla numa espécie de “vazio” recheado da nossa estrutura interna, maioritariamente quando somos levados por formas hibridas que o nosso subconsciente tem a capacidade de fornecer. O poder da Dança encontra-se na sua própria magia, no ato de dar a conhecer mundos puros numa ingenuidade ímpar, flutuando em gestos de tremenda leveza, bem como em mundos obscuros, onde o lado negro prevalece e os movimentos estão carregados de uma carga e de uma força intensa, fazendo com que o público participe de forma implícita, ou por vezes explicita e viaje entre corpos dançantes e imaginários genuínos, únicos, repetíveis ou irrepetíveis, levados por ventos pisados por sapatos de pontas, ténis, calçado simples de quotidiano, ou meramente descalços num mar de técnica, liberdade e estética que vive na Dança e absorve intensamente todos aqueles que permitem que a Dança os incorpore na sua maior e mais profunda perfeição.
 
EP: O que sente quando dança ou cria uma coreografia?
JC: Realizar uma coreografia é um processo criativo que me permite comunicar através de movimentos o que as palavras muitas vezes são incapazes de expressar, por isso dou vida às sílabas, aos meus pensamentos, aos meus sentimentos, às emoções, às minhas memórias, às minhas vivências, ou simplesmente ao “nada” que vive dentro de mim enquanto reflexão silenciosa composta por vazios que me consomem como ser humano em sonhos dirigidos por mundos icónicos e surrealistas, o meu “eu” conjugado com aquilo que evidência o que fui, que dirige o que sou, e que imagina e idealiza o que serei. Somos seres sociais mas ao mesmo tempo somos uma essência que veste a ausência do ruído verbal, e é precisamente nesta insensatez que gestos únicos oriundos do meu corpo me fixam de forma rígida e ao mesmo tempo me libertam de forma espontânea, mas por vezes imposta por diretrizes que me são propostas por quem aprecia a minha arte de Dançar.
As minhas coreografias vivem daquilo que transporto no interior do meu ser, um misto de sensações que através de toda a expressão corporal é transmitida de forma livre e explicita, ou de forma contida e resguardada do observador que aprecia e capta a mensagem que pretendo transmitir ou encobrir, tornando assim as minhas coreografias em enigmas, jogos ilusórios e puzzles para descodificação. Ao dançar sinto que o meu corpo flui de forma leve e solta, ou rígida e robótica ao som de ritmos musicais calmos ou energéticos, realizando movimentos que permitem uma libertação profunda do meu “eu”, uma introspeção real e utópica onde o conhecimento da minha estrutura corporal vigora e facilita toda a comunicação dançante, cujo o objetivo é proporcionar ao público um entendimento não verbal, porém facilmente compreendido ou dificilmente decifrável, mediante as minhas convicções, decisões ou imposições por outrem, onde as regras devem ser meticulosamente cumpridas.
A escolha das musicas tem um grande peso nas minhas coreografias, pois são elas que transportam o misto de emoções e sentimentos que atuam no meu corpo e dão vida às mesmas, uma junção de ritmos com movimentos provenientes de estados de alma, onde as letras das musicas são a poesia muscular e facial, expressiva e gesticulada eminentes no meu ser.
 
EP: As formas do infinitamente pequeno, por vezes, coincidem com as do infinitamente grande. Existem padrões universais?
JC: Tudo começa pela perspetiva e o modo como a mesma é representada e se apresenta ao observador, havendo inicialmente uma separação e posteriormente uma conjugação entre o pequeno e o grande que se instala numa realidade que converge para o ponto de fuga central, onde todas as linhas se cruzam no infinito. A perspetiva tem o poder de criar ilusões de ótica, o que faz com o infinitamente pequeno possa coincidir com o infinitamente grande, mas não significa que ambos sejam infinitos no que diz respeito ao seu tamanho ou volume, isso somente pode acontecer se forem vistos de um determinado ângulo porém sem garantias de absoluto, pois este remete para tudo o que está para lá da criação humana, nomeadamente o desconhecido. Duas formas podem se sobrepor uma na outra, por vezes até se confundem no espaço que nos rodeia e onde estamos inseridos, contudo, o observador tem a capacidade de manipular e ajustar essa sobreposição e separá-la através do contacto visual ou da circulação em torno das mesmas, onde a perspetiva é soberana e assume-se como paralela ou cilíndrica, ou cónica. A perspetiva paralela ou cilíndrica incide na axometria, nomeadamente na isometria, na dimetria e na trimetria, assim como na perspetiva cavaleira, sendo que estas representam a volumetria das formas através da combinação do comprimento, da largura e da profundidade, ao mesmo tempo que as vistas laterias, frontais e superiores se unem tornando-se numa única vista, um exemplo disso são os espaços das habitações onde observamos esquinas que ao circular por elas estamos a criar variações de ângulos. A perspetiva cónica tem por base um plano onde habita a linha do horizonte que contém um ponto de fuga central para onde todas as linhas convergem, deste modo, quer o observador esteja sentado ou de pé vai sempre verificar que essas linhas se vão encontrar num ponto comum, um exemplo disso são as linhas do comboio que se observarmos as mesmas de frente verificamos que se cruzam no infinito. Deste modo, para que o infinitamente pequeno coincida com o infinitamente grande é necessário que as formas sejam observadas de uma determinada perspetiva que permita essa sobreposição e ilusão de ótica. Existem métodos geométricos, esses são claramente padrões universais, pois permitem compreender o espaço e as formas nele inserido e assumem um papel fulcral aos olhos do observador que contempla o que está perante si, concedendo a perceção de medidas, distâncias e ângulos, entre outros.
 
 
EP: As formas geométricas abarcam todas as emoções e sentimentos humanos?
JC: Todo o universo é formado por formas geométricas, elas estão presentes no nosso quotidiano quer seja de forma grandiosa ou em pequenos pormenores, é absolutamente explicito e inegável que as mesmas também fazem parte do ser humano, pois vivemos delas e elas não sobrevivem sem nós. Qualquer forma geométrica tem a capacidade de mexer com a nossa visão, com o nosso tato, a nossa audição e até com o nosso íntimo, pois somos capazes de observar um objeto, tocar na sua superfície e ouvir o seu barulho seja ele grande ou “silencioso” e possuir estima e afeto, ou indiferença e ódio, emoções e sentimentos díspares que se encontram e conjugam, ou se separam e não se misturam mediante as nossas sensações e reflecções do momento. Do ponto de vista humano ou até mesmo de um animal designado como irracional, existe a capacidade de se sentir algo por determinadas formas, o que se sucede igualmente com as formas para com estes seres, pois elas próprias existem e tem vida mesmo que mundanas e possivelmente não conscientes, porém, é um fato que elas guardam consigo símbolos e cargas emocionais provenientes daquilo que elas são enquanto formas, do modo como atuam no mundo em que se inserem e do valor atribuído pelos seres referidos. As formas geométricas apresentam-se no universo e explicam a natureza através de métodos geométricos que permitem compreender a sua pureza, por vezes de difícil entendimento ou aparentemente ilusória, mas real aos olhos do observador.
 
EP: Através da pintura, arquitectura ou design as formas ganham vida... No seu caso, como capta as formas e as cores do universo? É um processo intuitivo ou não?
JC: A nossa visão tem a capacidade de captar as cores através da luz que permite iluminar tudo o que nos rodeia, num processo de absorção e reflexão, onde a luz é absorvida e posteriormente refletida para o nosso globo ocular que gera imagens de forma invertida e a nossa pupila abre automaticamente de forma variada para que a quantidade de luz seja controlada de acordo com o funcionamento da nossa visão, um exemplo muito semelhante são as máquinas fotográficas e o seu método de captação da imagem e da luz. A perceção das cores na nossa visão é feita através das células cones e bastonetes, ou seja, é o resultado da combinação das três cores que os três tipos de cones são capazes de identificar, nomeadamente o vermelho, o verde e o azul, por isso tudo o que observamos contêm uma determinada gama cromática imposta pela própria natureza ou pela mão humana, assim como acontece com as formas que são resultado da própria criação universal ou do que homem é capaz de produzir, tal como acontece na Pintura, na Arquitetura, no Design, entre outras Artes aprazíveis de serem contempladas, sendo que todas elas são detentoras de geometria, de linhas curvas e retas, de uma volumetria que lhes confere a sua forma e que as insere no plano do espaço e lhes permite ter vida.
Tenho métodos muito próprios de captar as formas e as cores do universo, sendo que numa primeira abordagem aprecio as mesmas para depois as puder desmistificar e quando necessário as agrupar e as transformar na minha visão para as estabelecer na minha mente, permanecendo assim na minha memória. Ao observar uma forma realizo um processo de desconstrução interna da mesma, percebendo a sua geometria e a forma como ela se sustenta no espaço, faço uma radiografia visual 3D para compreender as suas visibilidades e invisibilidades, onde consigo delimitar os seus contornos internos e externos para posteriormente ir ao seu encontro para conferir a minha leitura visual através do tato e confirmar a sua construção. A captação das cores também passa por um processo de desestruturação dos pigmentos através da observação, para que a essência das cores seja desvendada pois muitas vezes torna-se confusa dada a junção de tonalidades que definem uma determinada cor ou conjunto de cores. Em primeiro lugar verifico a pigmentação e o processo de execução das cores para que a tonalidade seja aquela que a mesma contém e se apresenta aos nossos olhos, pois quando vejo uma cor analiso-a para perceber se a mesma se insere no conjunto das cores quentes ou frias, ou na transição dos espectros cromáticos que a compõe quando se apresenta como cor singular ou multicor, sendo que posteriormente exploro a sua granulagem e textura, bem como a forma como a mesma é aplicada no plano que pode ser variada e determinante na compreensão da conceção das cores, pois as cores adquirem tonalidades mediante a superfície onde estão assentes, como por exemplo uma pintura em papel ou numa tela não é a mesma coisa que uma pintura numa madeira ou num azulejo, pois as características dos materiais diferem e as cores quando aplicadas também são distintas. O universo vive de formas e de cores que toda a humanidade tem capacidade de contemplar, mesmo perante a escuridão, a sombra e a penumbra, existe sempre uma cor escura que somos capazes de reconhecer, nomeadamente o preto.
Realizo todo este processo de captação das formas e das cores não só de forma intuitiva como também de modo pensado e refletido, tudo depende como as mesmas se apresentam diante mim e como o meu “eu” as recebe interiormente através dos sentidos, da visão e do tato, pois por vezes podem induzir em erro se não forem bem estudadas ou quando são impercetíveis, assim sendo, para uma boa compreensão de ambas é necessário entrar dentro delas e extrair toda a informação visual e palpável da sua estrutura interna para uma melhor perceção do seu exterior, nomeadamente do seu suporte e da sua estética.
 
EP: O que mais gosta de pintar?
JC: Gosto de pintar um pouco de tudo, mas essencialmente figuras e temáticas surrealistas, mundos mágicos e de fantasia, sonhos onde todo o meu imaginário vive e remete para todas as minhas influências, nomeadamente para o meu filme favorito desde a minha infância, “O Feiticeiro de Oz” (“Wizard of Oz”), onde me revejo e de algum modo encarno na personagem Dorothy Gale e vou descobrindo o meu caminho através de percursos misteriosos tal qual estrada de tijolos amarelos, encontrando pelo caminho personagens como o Espantalho, o Homem de Lata e o Leão do referido filme, mas no meu caso tudo o que se cruza comigo no meu quotidiano e faz parte das minhas vivências, memórias e recordações que são misturadas com mundos utópicos e sombrios tal qual filmes do Tim Burton, ou até mesmo a célebre “Alice no País das Maravilhas” (“Alice in Wonderland”). Tenho também como grande influência o pintor surrealista Salvador Dalí, pois é um artista cujo as suas obras incidem em imagens fantásticas, oníricas, misteriosas, bizarras e de grande loucura inserida, onde tudo o que consideramos impossível nasce, floresce e nunca se esgota no vazio, pois este vácuo aparentemente eterno é desprovido de garantias absolutas e realça as incertezas mundanas, lógicas ocultas mas determinantes para a capacidade de se tornarem paradoxais, ilógicas e absurdas aos olhos, pensamento e essência do observador. Outra das minhas influências são as marionetas e o mundo obscuro existente por de trás das mesmas, as personagens encantadoras e assustadoras que as mesmas comportam, bem como uma carga sombria e mágica que transparece e se esconde numa simbiose de universos paralelos e desiguais que ao mesmo tempo se desagregam. Todas estas influências encontram-se bem patentes nas minhas obras, não só na Pintura como inclusive na Dança, na Música, etc., todas elas realizadas de forma autónoma, mas focando-me nas Artes Plásticas, nomeadamente na Pintura, realizo as minhas obras de acordo com o que o meu “eu” pretende transmitir e busco temáticas únicas e inimagináveis que me surgem da realidade ficcionada que imagino ou sonho, onde tudo é permitido, inclusive o que mais de grotesco possa existir, assim como busco a própria realidade do quotidiano para que possa criar um cruzamento entre mundos existentes e ilusórios.
Gosto de pintar figuras transformadas entre o puro e o assustador, de fisionomias atípicas e metamorfoseadas numa conjugação entre tudo o que se assume à minha volta diariamente, a realidade em constante mutação, bem como o que a minha imaginação vai buscar e evidência através de sonhos e pensamentos. Exemplo disso são os “monstrinhos” que pinto com regularidade, ou os rostos e corpos transfigurados onde é eliminada parte da componente humana para dar vida a um lado “animalesco” e “alienígena”, uma fusão de ficção cientifica com o surrealismo, o misterioso, o oculto, o sombrio, o fantástico, o mágico e o real visível mas possível de ser transfigurado. Sou capaz de dar vida a uma simples chávena de chá, criando a partir desta um ser do outro mundo, onde transformo as suas pegas em tesouras compostas por ramos e folhas de árvores que são salpicadas por musgo que vai cobrindo a superfície em torno da chávena, ao mesmo tempo que esta se transforma num corpo de peixe com pés humanos que terminam em asas de borboleta que enviam pequenas abelhas que sobem até ao topo da chávena que se encontra cheia de chá sólido e ao mesmo tempo pegajoso, saindo da chávena um ser estranho cuja colmeia das abelhas é quebrada por uma escultura que se apresenta desfeita para dar lugar a um corpo de cavalo com cabeça de bola de cristal, onde a feição humana aparece meio desvanecida surgindo um rosto bizarro de boca aberta e olhos esbugalhados de onde saem larvas e sangue escorrido. Da mesma forma que nas figuras que pinto vou criando seres estranhos, também os cenários que as rodeiam são igualmente enigmáticos e invulgares, para que toda a composição contenha uma dinâmica criativa e absurda que permita ao observador viajar por entre mundos estranhos e ao mesmo tempo entrar na própria obra através da contemplação, tentando descodificar o segredo aparente ou a verdade existente, imposta ou vedada pelo meu “eu”, a minha essência resguardada.
 
EP: A arte é absolutamente útil?
JC: «Tudo é belo na medida em que pode ser considerado belo.»
Immanuel Kant
Citando esta minha frase favorita do filósofo Immanuel Kant, que a guardo comigo diariamente e surge no meu pensamento pois me ajuda a refletir e a compreender o meu quotidiano, o que se assume perante mim, o meu meio envolvente, o mundo na sua mais perfeita condição universal e epistemológica, compreende-se assim que tudo pode ser observado, palpável de forma real e concebido através da mente e da imaginação, e consequentemente considerado belo de acordo com os gostos pessoais de cada um. Deste modo, tudo o que nos envolve é considerado Arte de sua génese o criador do mundo e posterior mão humana em tudo existente, por isso a Arte é absolutamente útil. É certo que chamamos Arte ao que somos capazes de observar e apreciar numa exposição de Pintura, numa estátua que vemos na rua, em monumentos históricos, em livros que lemos, em músicas que ouvimos, em bailados que observamos, ou até nas nossas casas em azulejos ou mobílias com estilos simples ou rebuscados, pois ligamos sempre a Arte ao contemplativo e ao entretenimento que nos abraça e acaricia a nossa alma e permite que libertemos energias positivas e negativas, estados de espíritos díspares pois a Arte tem o poder de transportar a certeza e a incoerência que nos completa e nos elucida, mas também nos pode baralhar e distanciar da realidade emocional vivida e transformada em supressões do nosso ser. Deste modo, toda a Arte deve ter extrema importância e deve ser valorizada e destacada, quer seja as Artes que estamos habituados a chamar de Arte, como as Artes que não damos essa conotação mas que fazem parte do nosso quotidiano, a natureza e aquilo que é criado pelo homem, ou seja, o mundo no seu todo. Assim sendo, todas estas Artes são belas e devem ser consideradas belas de acordo com a perceção e gosto de cada um, pois somos seres livres para apreender internamente e perceber de que modo elas mexem connosco e se tornam absolutamente úteis na nossa vida.
Cito a frase de minha autoria e que prevalece no que jamais deve ser negado:
«Se a Arte vive no corpo do artista é lá que deve permanecer e ser eterna.»
Joana Completo
 
EP: Muito obrigado, Joana Completo.
​

CONVERSA COM LUÍS OSÓRIO

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​Luís Osório (LO) é escritor, jornalista, ex-director de A Capital e do Rádio Clube Português, bem como autor e apresentador de vários programas emblemáticos que passaram na antena da RTP. As linhas que se seguem resultam de uma comunicação amavelmente concedida por Luís Osório à página “ A Estante do Porteiro”( EP).
 
EP: Qual o código de barras do silêncio?

LO: Deus.

EP: Substantivo, adjectivo ou advérbio?

LO: Substantivo.

EP: Os significados estão em vias de extinção ou os significantes diluem-se na ditadura da imagem, seja virtual ou não?

LO: Nós estamos em vias de extinção.

EP: O que falta escrever?

LO: O que não foi escrito.

EP: As ideias são património comum da humanidade, objectos constantes de “furto” criativo ou redutos de sobrevivência das “elites”?

LO: São património comum da humanidade e acabam por ser roubadas pelas elites económicas quando são consideradas suficientemente maduras.  

EP: O que é mais potente no processo criativo: A falha, a queda ou a ilusão?

LO: As três são muito potentes. Talvez escolhesse a ilusão. 

EP: Exposição, demonstração, expiação ou ocultação?

LO: Expiação. 

EP: A maioria das pessoas passa uma vida sem se conhecerem, sem se aceitarem ou sem se superarem?

LO: Sem se conhecerem no que não é visível.

EP: Ainda existe salvação para o amor?

LO: Se ainda existir salvação para nós. 

EP: É mesmo preciso responder a todas as perguntas ou é preciso perguntar para ter sempre as mesmas respostas?

LO: Nesta fizeste-me hesitar. Não é preciso responder a todas as perguntas, no limite não será mesmo necessário responder a nenhuma. E é fundamental perguntarmos para, farejando na nossa própria cauda, possamos perseguir a ideia de que há respostas/ caminhos que não imaginávamos. 
 
EP: Muito obrigado, Luís.
 
Novembro de 2017.

CONVERSA COM LUÍS BIZARRO BORGES

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 Luís Bizarro Borges (LBB) é gestor de conteúdos digitais, autor, jornalista e um dos pioneiros em Portugal na área da divulgação de microfilmes (thebestmicrofilms.com). A conversa que se segue resultou de um afável contributo que deu à Estante do Porteiro (EP).
 
EP: A novidade é uma mania dos tempos modernos? Um jornal precisa mesmo de se antecipar ao acontecimento?
LBB: Não diria que a novidade é uma mania dos tempos, mas sim uma necessidade. Estou-me a referir às diversas áreas do conhecimento. Mas penso que a pergunta tem outro alcance, aludindo aos média. Nesse sentido, um órgão de informação tem uma dupla função: por um lado, deve antecipar o acontecimento quando se trata de informação prognosticada relacionada com a proteção civil ou áreas similares e matérias que consubstanciem crimes ou ações ilícitas; mas, por outro lado, na maioria das matérias deve manter-se equidistante entre a informação recebida (algumas de fontes duvidosas) e o acontecimento factual futuro. 

EP: Os factos estão a ser produzidos, manipulados ou maquilhados? O regresso às fontes é fundamental ou basta uma secretária e o acesso aos motores de busca?
LBB: Há um significativo volume de informação que é produzida ou manipulada em função dos interesses dos respetivos grupos de pressão. Mas estaria a ser injusto se não ressalvasse que a maioria dos jornalistas profissionais preserva ou luta pela liberdade de interpretar os factos. O regresso às fontes é tão importante como aceder aos motores de busca, porque um pode e deve ser o complemento do outro.

EP: Não fazem já os motores de busca uma clivagem dos factos e filtram as pesquisas de acordo com as preferências de pesquisa do utilizador? É caso para dizer “com a verdade me enganas”?..
LBB: Isso é verdade em relação à área comercial. Se, por exemplo, pesquisarmos a palavra “perfume”, os motores de busca vão-nos colocar à frente do nariz as marcas que pagaram para estar na primeira página desse programa de pesquisa. Mas se pesquisarmos, por hipótese, sobre Albert Einstein temos acesso a um enorme caudal de informação, muita dela de grande qualidade, que se não fosse a internet precisaríamos de estar mergulhados nas bibliotecas durante alguns anos.

EP: Os processos criativos estão submetidos a que lógica? 
LBB: A maior parte obedece à lógica do mercado. Produto que não se venda está condenado, mesmo que seja criativo e interessante. Todavia, há uma minoria à margem da lógica do mercado que consegue sobreviver, muitas das vezes devido a circunstâncias aleatórias, como, por exemplo, um produtor discográfico decidiu ouvir uma gravação, entre centenas, de um candidato a músico, gostou do tema e passou a apostar nesse artista. 

EP: Como qualificas o actual mercado de produção de conteúdos?
LBB: O mercado português é pequeno e fechado. Uma coisa está relacionada com a outra. Neste sentido, a qualidade acompanha o contexto.

EP: Os argumentos para filmes, séries e televisão são de qualidade? Ou continuamos a produzir séries “em pacote”? 
LBB: Há várias realidades. Infelizmente, os mais comuns e difundidos são os “enlatados” norte-americanos. Todos conhecem a fórmula: os maus são muito maus e os bons muito bons; os maus dominam quase todo o filme ou série e quando estão prestes a destruir os bons, estes renascem das cinzas, como o Fénix, e eliminam os maus. Desde miúdo que vejo esta receita. Para mim é enjoativo.

EP: Os microfilmes são uma boa aposta numa sociedade imediatista. Será o conteúdo do futuro face à economia da imagem digital contemporânea?
LBB: Os microfilmes (entenda-se, curtas-metragens com menos de cinco minutos), mais do que uma resposta à sociedade veloz são uma nova categoria de cinema. É muito mais difícil contar uma boa história em menos de cinco minutos do que em hora e meia. Todos os cineastas conseguem fazer uma longa-metragem, mas nem todos têm capacidade para fazer um microfilme. Estou convencido que vai ter impacto nos próximos anos, sem substituir outros formatos ou categorias que já existem.

EP: Já escrevestes livros interdisciplinares com o teatro e a física quântica. Existem várias realidades. O que deve ter o bom livro?
LBB: O conceito de um bom livro é subjetivo. Eu gostei de escrever os livros que gostaria de ter lido. Livros que não tivessem narrativas óbvias e que fugissem ao convencional. Mas isto não significa escrever o que nos vem à cabeça. No meu livro “Pelo lado do invisível” estive cerca de um ano só a preparar o conteúdo. Quando comecei a escrever nada saiu por acaso ou por um raio de inspiração.

EP: Como analisas o mercado editorial?
LBB: Parece-me muito restritivo. Algumas editoras mais arrojadas faliram. As que subsistem obedecem às regras do mercado. Para quem estiver empenhado em publicar, há a possibilidade de fazer edições online gratuitas. Há programas interessantes nesse campo.

EP: Face ao relativismo ético, à sociedade neoliberal e à agressão ambiental ainda temos razões para o optimismo?
LBB: Sim, temos. Na Idade Média, a sociedade regia-se por éticas absolutistas, não tinha mecanismos neoliberais e o ambiente era verde. No entanto, havia pessoas a morrer queimadas vivas nas fogueiras por terem ideias diferentes, muitas não tinham trabalho nem pão para comer e morriam à mínima doença. Nessa época tínhamos razões para sermos otimistas?
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EP: Muito obrigado, Luís

CONVERSA COM JOSÉ PINTO CARNEIRO

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José Pinto Carneiro (JPC) é escritor e afamado guionista. A conversa que se segue resultou de um gentil contributo que deu à Estante do Porteiro (EP).

EP: As tuas iniciais remetem para Cristo. O que faz o “p” no meio?
JPC: O “p” vem de “Fantástico”. Na altura em que me nomearam, dada a minha provecta idade, “fantástico” escrevia-se com “PH”.

EP: Estiveste em Jerusalém. A cidade tem sentido de humor ou confundiram-te com a personagem Brian interpretado pelo Graham Chapman dos Monty Pyton?
JPC: Jerusalém não tem sentido de humor. Está tudo muito sério e, dado o número elevado de religiosos por metro quadrado, tens sorte em não levar uma pedrada na tola por dá cá aquela palha. Como dizeres que é ali a capital desde ou daquele país. 

EP: Não te quiseram crucificar? Existem muitos críticos por Jerusalém?... 
JPC: Sim, quiseram. E crucificaram, em Madrid, quando me confiscaram a mochila e só ma devolveram dois dias depois. Em matéria de críticos, Jerusalém, há quinze dias, prezava o respeito pelas diversas religiões. Agora está tudo à pedrada. (“Let’s go to a stoning”… como diriam os supra citados Monty Python).

EP: Se fosses advogado de Cristo que argumento usarias para o salvar?
JPC: Invocava insanidade mental, obviamente. Era limpinho.

EP: O altruísmo compensa? Ou a vida social desmente o que as religiões prometem?
JPC: O altruísmo compensa. O que as religiões prometem é que não.

EP: Um bom argumento faz sempre um bom filme? 
JPC: Nem sempre, mas há essa possibilidade. O contrário é que é insofismável: um mau argumento dá sempre um filme - bosta.

EP: Não é concorrência desleal escrever histórias baseadas em factos verídicos, sobretudo quando as “ fake news” abundam? 
JPC: Um dia tudo será “fake news”. E nessa altura chegará o Messias (se fores judeu), ou regressará Jesus (se fores cristão). O problema vai ser passar pelo portão dourado de Jerusalém, pois os muçulmanos, prevenindo-se desta eventualidade, mandaram selar o dito portão com pedra. Aquela malta não dorme em serviço.

EP: A realidade e a ficção misturam-se mesmo? Ou é um mito? …No processo criativo tens mais essa consciência ou achas que é o café da manhã que tem qualquer coisa lá dentro que te abre as portas da percepção?
JPC: A ficção não é mais do que realidade enriquecida .Por isso é que dá mais trabalho. Quanto ao café da manhã… que marca andas a beber?

EP: Sendo líder, como consegues colocar os teus companheiros de ofício no mesmo grau de realidade? São obedientes ou usas o “chicote” com frequência?
JPC: Deixei de usar o chicote para não me acusarem de assédio sexual. Agora limito-me a vender as minhas ideias com lábia de feirante. Quando mesmo assim não resulta, amuo e digo que não falo mais para eles a não ser que façam como lhes peço.

EP: Entre deus e o diabo, quem preferias para chefe?
JPC: Deus, porque não existe. E já se sabe: patrão fora…
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EP: Muito obrigado, José.


Créditos Fotográficos:  Armando M M Fontes

 


Ernest Hemigway

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​Ernest Miller Hemingway (1899-1961), romancista e contista norte-americano, nasceu em Oak Park, Chicago, e foi educado no liceu local. O pai de Hemingway era médico e transmitiu ao filho o entusiasmo pelos desportos. A mãe insistira para que o filho se dedicasse à música, mas Hemingway resolveu tornar-se jornalista e escritor. Trabalhou inicialmente como repórter para oKansas City Star . Em abril de 1918, durante a Primeira Guerra Mundial, alistou-se como voluntário, tendo sido colocado numa unidade de ambulâncias na frente italiana. Pouco depois de ter chegado a Itália, foi ferido numa perna e transportado ao hospital da Cruz Vermelha. Regressou à América e em 1919 voltou a trabalhar como repórter para o jornal de Toronto Star Weekly . O casamento com Hadley Richardson, em 1921, foi o primeiro dos quatro matrimónios do escritor. Na Europa, Hemingway trabalhou como correspondente. Em Paris, para onde partiu em 1922 ao serviço de um jornal canadiano, conheceu Gertrude Stein e frequentou os círculos literários da capital francesa. Ali contactou com outros expatriados: Ezra Pound, James Joyce e Scott Fitzgerald. O livro Three Stories and Ten Poems teve uma circulação limitada em Paris (1924) e no ano seguinte foi publicado o livro de contos In Our Time , que recebeu a aprovação dos críticos americanos. As primeiras obras de Hemingway revelavam a influência de Ring Lardner e Sherwood Anderson, mas a carreira literária do autor desenvolveu-se fundamentalmente a partir das experiências pessoais que mais o marcaram, entre as quais se destacam a guerra e o jornalismo. Em 1926 foi publicado o romance Torrents of Spring , uma paródia do livro de Sherwood Anderson Dark Laughter . No mesmo ano Hemingway publicou The Sun Also Rises (editado na Inglaterra com o título Fiesta ). Este romance e o volume de contos que se seguiu ( Men Without Women , 1927) confirmaram a reputação do escritor. A ação de The Sun Also Rises desenrola-se em Paris e tem como protagonista um jornalista americano ferido na guerra. O romance desenvolve muitas das questões centrais da obra de Hemingway. Em 1928, divorciado de Hadley e casado com Pauline Pfeiffer, o escritor mudou-se para Key West, na Florida. No final desse ano o pai de Hemingway suicidou-se. No romance de 1929, A Farewell to Arms ( Adeus às Armas ), foi retomada a temática da guerra. Entretanto as suas viagens a Espanha, África e Cuba revelaram-lhe atividades que considerou símbolos da condição humana: a tourada e a caça. Na primeira inspirou-se para escrever Death in the Afternoon (1932), um dos seus melhores livros. Em The Green Hills of Africa ( As Verdes Colinas de África , 1935) descreveu as aventuras de um safari, um tema que retomou em The Snows of Kilimanjaro e The Short Happy Life of Francis Macomber , ambos inseridos na coletânea The First 49 Stories (1938). A experiência da guerra voltou a marcar Hemingway quando este partiu para Espanha como correspondente durante a guerra civil espanhola (1936-39). Um dos mais conhecidos romances do escritor, For Whom the Bell Tolls ( Por Quem os Sinos Dobram , 1940), inspirou-se neste episódio. Hemingway escreveu ainda Across the River and Into the Trees ( Na Outra Margem, entre as Árvores , 1950) e The Old Man and The Sea ( O Velho e o Mar ), um breve romance sobre a luta de um pescador cubano contra um peixe gigante. O livro, considerado uma parábola da humanidade, valeu a Hemingway o Prémio Nobel da Literatura em 1954. O estilo inovador de Hemingway, que preferiu a economia de linguagem e a palavra depurada aos artifícios literários e à extensa análise psicológica, influenciou as gerações seguintes de escritores americanos. Hemingway, que desejou ser um homem de ação, um artífice em vez de um artista, cultivou um ideal de virilidade, procurando contornar a derrota final da condição humana: a morte. Suicidou-se no dia 2 de julho de 1961. Fonte: Infopédia

Virgílio Pinera

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Virgilio Pinera, cubano,nasce em Cárdenas, em 1912,  e vem a falecer em Havana, de um ataque cardíaco em 1979. Homossexual, ateu, crítico das grandes ideologias nacionais do século XX e personificação da liberdade intelectual em Cuba, descrente do cerimonial moderno da literatura. Perseguido e ostracizado, mas , no entanto, não deixou de ser Tradutor, Articulista nas mais importantes revistas hispano-americanas (Orígenes, Ciclón, El Sur,entre outras), Dramaturgo, Poeta, Romancista e um exímio Contista. Em Portugal, o Grande Baro e Outras Histórias chegam-nos agora pela mão da Colecção Pedante sob orientação de Rui Manuel Amaral e Duarte Pereira entre outros.
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