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CONVERSA COM ANTÓNIO CARLOS CORTEZ

5/23/2020

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António Carlos Cortez (ACC) é poeta, professor de literatura portuguesa, ensaísta e crítico literário. A conversa que se segue resultou de um amável contributo que deu à Estante do Porteiro (EP).
 
EP: A escrita é uma reconstrução, um processo ou um fim?

ACC: A escrita é um processo que visa um fim. Dependendo da finalidade a que se destina - o processo de construção de um poema não é exactamente o mesmo de um ensaio, ou de uma notícia - pode esse processo ter um ritmo mais lento, gradual, investigativo (um romance exige essa construção lenta, tal como um ensaio, que exige investigação), ou ser mais irruptivo. Um poema lírico pode, porventura, ser uma resposta imediata a uma qualquer experiência. Mas, em todo o caso, o escritor trabalha com palavras e por isso deve ter sempre presente que ao trabalhá-las o processo deve ser maturado. Por isso um poema lírico é reescrito, alterado. Nesse sentido, reconstrução do já escrito é também um dos momentos da redacção poética. Vivemos, sentimos, imaginamos, transferimos para o mundo outro - o textual - o que a experiência nos deu. Nesse processo de transferência, trabalhando a linguagem, constrói-se a forma significante, o poema. Isso pede reconstrução, e assim a escrita literária acaba por ter como seu próprio e único fim o processo mesmo de ser escrita.

EP:Onde se encontram ou desencontram o poeta e o crítico literário?

ACC: O poeta não está nunca desvinculado da natureza crítica que toda a leitura que faz dos outros e de si próprio pressupõe. O facto de escrever regularmente crítica literária possibilita-me ler o passado, a historicidade poética, os meus contemporâneos. Nesse acto de atenção ao outro, creio que a minha poesia acaba por ganhar mais sentido. Ninguém escreve sozinho. Ainda que a poesia seja um acto que pede uma solidão estrutural, o acto crítico compensa essa necessária solidão e abre o leitor que somos à vida da poesia, precisamente o título do livro de crítica e ensaios reunidos de Gastão Cruz, e não acaso é a vida da poesia que o poeta persegue, a vida dos textos, da memória, da tradição. Ou seja: ao poeta que exerce critica é impossível o desencontro entre a dimensão criativa e rigorosa a que o poema aspira e a criatividade e rigor com que deve, no acto crítico, ler a poesia do passado e do presente. Não há desencontro, há simbiose.

EP: A palavra certa cura o tempo incerto que vivemos?

ACC: Não creio que a palavra possa curar o tempo incerto em que vivemos. Todavia, como bem vê Carlos de Oliveira, as palavras têm um poder, são perigosas ou frágeis, podem apoucar a existência ou engrandecê-la. Razão suficiente, penso, para que tenhamos atenção às palavras e ao seu peso. No campo político isto é especialmente importante: quando um fascista como Trump, ou Bolsonaro, Orban ou Maduro esvaziam a possibilidade das palavras puderem ter significado e consequência, o que fazem é instrumentalizar as palavras pondo-as ao serviço da propaganda. Hitler teve como lema de 1933 a frase "Fazer a Alemanha grande outra vez". Trump tem o mesmo horizonte na mira. A sua linguagem, verbal e corporal são próprias de alguém que está pronto para engendrar a guerra. Para isso a linguagem que produz é e tem de ser ínvia, cínica, imediata (o Twitter, a resposta pronta, irreflectida, mas com aparência de lucidez ou de coragem). Mentir, mentir, mentir, essa é a máquina que os actuais fascistas (populismo é eufemismo) usam e de novo é a linguagem a arma que usam para manipular. Lições aprendidas com Mussolini, Estaline, Goebbels, mas também com Johnson, Nixon, Reagan, Os dois Bush… No fundo, a palavra certa no tempo incerto só poderia ser a da verdade. A poesia não vem dizer, não pretende dizer nenhuma verdade, nem nenhuma mentira. A palavra de poesia pode ser a descoberta de um real outro. Nessa palavra criativa, de imagens novas, nascidas da associação permanente de sentidos, há uma procura incessante  - a procura da liberdade. Só nessa perspectiva, na medida em que o poeta diz não a toda a espécie de totalitarismos, e de paternalismos; só porque é palavra poderosamente livre é que poderemos dizer que a poesia pode ser a palavra certa. Mas ela actua no plano da imaginação, reflecte-se nas tomadas de posição mais heterodoxas do poeta. Pode ter, como mostram a poesia de Brecht, de Éluard, de Gottfried Benn, de Ferreira Gullar, ou de Ruy Belo, um potencial agitador, ou de consciencialização política e alertar para a urgência da verdade. Nesse sentido, então, direi que sim, que pode haver momentos em que dada imagem, frase, metáfora, podem ser palavras certas. Pedras atiradas contra o tempo incerto.
 
P: A pandemia tornou o leitor acidental mais consciente da importância do livro?

ACC: Talvez. Creio que os hábitos de leitura em Portugal, que são manifestamente poucos, não se alteraram grandemente por causa desta pandemia. Terão descoberto os nossos jovens autores que, antes desta situação de confinamento, não conheciam? Acaso se pediram em compras de livros online as obras de Cardoso Pires ou de Rúben A. Leitão? Estamos em ano de centenário do grande poeta João Cabral de Melo Neto - até agora o que se fez, leu e escreveu sobre o grande poeta de Morte e vida Severina? Daniel Faria morreu há 20 anos, houve livros deste poeta a serem mais lidos em tempo de pandemia? Sou céptico em relação a estes meses de confinamento. O que se leu foi em grande medida o que se lua anteriormente. Romance pseudo-policial, livros de gastronomia e de auto-ajuda. Coisas assim. Junto dos meus alunos procurei dar-lhes a conhecer alguns poemas de autores que os currículos não contemplam: Armando Silva Carvalho, Assis Pacheco, Jorge de Sena, Fiama, Luísa Neto Jorge, Cesariny… Mas a corrente é forte: o online pode mesmo afastar as pessoas do livro e da leitura do que é complexo, a literatura, a filosofia, a arte… E não se formaram leitores nos últimos 20 anos. O que se fez com as gerações mais novas, retirando a literatura dos programas de Português, foi letal: não se compra poesia, nem romance digno desse nome. Não podem ler o que não conhecem e a escola, salvo excepções, não formou leitores para o futuro. Tornou os nossos jovens debitadores de regras de gramática, mas insensíveis e incapazes de apreciar e escrever sobre poesia, ideias, história. Produzimos gerações de analfabetos computacionais que lêem Danielle Steell, Dan Brown, Rodrigues dos Santos e outros pseudo-romancistas… tenho dúvidas quanto aos milagres que esta pandemia, no caso de criação de novos horizontes de leitura, possa ter gerado.
 
P: O que o atrai na prosa poética? Como começou a escrever?
​
ACC: Atrai-me a possibilidade de cruzar uma respiração mais longa, a frase mais longa e a hipótese de, a partir de uma frase com ritmo mais longo, poder irromper a metáfora, a imagem, aquilo a que eu chamo o flash verbal. A prosa na poesia tem uma tradição que remonta a Alouisius Bertrand, Baudelaire e Rimbaud. Li maravilhado, no fim da adolescência e já mais tarde, com vinte e muitos anos, Gaspar de la Nuit, de Bertrand, e sobretudo os Petits poémes en prose, de Baudelaire e, com absoluta fidelidade ao seu programa alquímico, a poesia de Rimbaud. A procura de uma prosa diamantina, isso me move. Ramos Rosa, Octavio Paz, Herberto, Fiama, Ruy Belo, Eduardo Guerra Carneiro, Carlos de Oliveira, Gastão Cruz, Guinsberg, esses também me foram e são essenciais. Quer dizer, o poema em prosa é a forma significante que, neste momento, mais concorda com a minha respiração.
EP: Quantas paisagens interiores o poeta tem de atravessar para alcançar a visão da forma perfeita?
ACC: As paisagens que o levem, como as imagens do poema de Camilo Pessanha, ao "lago escuro silente de juncais" são múltiplas, inumeráveis. Para alcançar a visão perfeita o poeta tem de estar atento como uma antena, como diz Sophia. Tem de ser vigilante e somar à vigilância o rigor da expressão, como pede Luiza Neto Jorge. Só assim as imagens interiores podem transportar-se para um mundo de linguagem único e independente. É a voz inimitável, a forma perfeita aquilo que se persegue na poesia, nas artes. Isso demora uma vida, é uma aprendizagem constante.
 
EP: Muito obrigado, António Carlos,
 
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