EP: Como surgiu o gosto pela literatura?
CB: Havia uma inclinação natural minha para ler, escrever... Uma atração constante pelos livros dos meus pais, pelos do meu avô. Lia tudo. E comecei a escrever diário e poemas desde os 6, 7 anos. Lá pelos 12 anos, o meu avô, que foi marinheiro e passou anos de insônia nas bibliotecas dos navios, introduziu-me no universo de Eça de Queirós e Camilo Castelo Branco. A partir daí não teve mais volta.
EP: Quais os projectos que neste momento está envolvida?
CB: Neste momento, estou preparando a edição do meu segundo livro de poesia e a realização de uma peça de teatro que escrevi como adaptação do romance Karen, de Ana Teresa Pereira, vencedor do Prêmio Oceanos 2017.
EP: O seu instrumento de trabalho é a palavra, mas usa-a em diferentes plataformas multimédia? Que efeito a transfiguração da palavra tem na busca de novos sentidos e horizontes?
CB: A poesia é anterior ao poema e é mais espaçosa do que o poema. Gosto de complementar a palavra escrita com outras possibilidades de comunicação, dar-lhe voz, paisagem, textura, de modo a materializar de forma mais viva aquele momento inaugural em que a poesia aconteceu. Por isso, faço performance, crio videopoemas, podcast, e mantenho um trabalho de fusão da imagem com a palavra no instagram @caliboreaz. Minha casa virtual — assim chamo a este espaço, porque fui eu que o construí e eu que cuido — é caliboreaz.com
EP: Sentiu diferenças no uso da palavra entre o Brasil em Portugal? Não só de quem a quer agrilhoar , como quem a quer libertar?...
CB: Há um pensamento que me acompanha: Portugal é a poesia e o Brasil a licença poética. Isto pode ser uma metáfora ou não. Sinto o Brasil como uma expansão da língua — e isso certamente influenciou a minha escrita, na forma e no conteúdo (que na poesia se confundem).
EP: O Brasil é mais aberto a novas abordagens da palavra? Ou o cânone, ou melhor, o “literariamente correcto “ também é autoreferencial?
CB: Acredito que sim. Ao ganhar mais espaço, mais veículos, a língua galga outros caminhos, alcança outros ângulos. “Literariamente correto” é uma expressão sem sentido para mim. Se é literário não pode ser correto. A literatura só acontece a partir de alguma subversão.
EP: Existirá alguma palavra jamais escutada , ou seja, algum sentimento ou estado de alma por descobrir, ou estaremos presos sempre aos limites das línguas/linguagens conhecidas?
CB: Deixo um texto do meu próximo livro, que parece ter sido escrito em resposta a esta pergunta:
em russo, há uma palavra específica para o afeto que se tem por alguém que se amou. em tcheco, há uma palavra para um certo tipo de angústia diante da própria mediocridade ou falta de habilidade (lembro de kundera falar dele). na escócia, parece que há uma palavra para o tique do lábio superior que indica a antecipação da alegria. em albanês, há alegres 17 e 27 palavras respectivamente para sobrancelhas e bigodes. em romeno, há sei lá quantas que significam, todas elas, neve, mas cada uma para especificar um certo tipo de neve, que por aqui (ao sol marinheiro da língua portuguesa) não distinguimos por desnecessidade. e se o russo olha para o amor antigo, veja bem: o japonês inventou uma palavra para um sentimento de pré-amor. em yagan, idioma indígena falado por um povo da tierra del fuego, mamihlapinatapai é aquele olhar trocado por duas pessoas quando ambas querem que a outra tome a iniciativa de fazer algo que ambas sabem que querem mas.
mas: o que é a coisa menos a palavra? a palavra menos a língua? isso que se percebe num repente e não tem esqueleto nem contorno para apoiar sua existência — não existindo, pode ainda resistir? se a língua nos funda a humanidade, e se há quem saiba que neve não é simplesmente neve, como amor não é simplesmente amor, assim como a saudade não é só uma falta, e calunga não é só saudade mas também abismo e deus... como posso eu
dizer algo agora daqui de onde estou?
EP: Muito obrigado, Cali.