EP: As cores e as formas das múltiplas imagens que invadem o quotidiano não permitem fixar o olhar? Enquanto curadora como lida com a disposição das obras de arte para superar as perplexidades e captar a atenção do observador?
HMP: Bom, em primeiro lugar, interessa dizer que, no meu caso concreto, a forma como tenho conduzido e conduzo a minha carreira nada tem que ver com qualquer tipo de exercício de catarse. O trabalho não é, para mim, nenhum tipo de compensação por alguma dimensão da minha vida que, eventualmente, tenha falhado. Não é isso. Desempenho a minha atividade profissional, nas várias funções que vou acumulando, em diferentes instituições ou projetos, como se de uma missão se tratasse. Acredito que na cultura e na ação cultural como fatores de transformação dos indivíduos e das sociedades e que a educação estética e o contato com a arte ampliam as nossas possibilidades de leitura e apreensão do mundo, sendo fundamentais para o combate à ignorância e à intolerância. Neste sentido, tanto na minha atividade como curadora, como em funções letivas ou no exercício da escrita, o meu olhar oscila entre a concentração e a dispersão, no sentido multidisciplinar e das múltiplas possibilidades de promoção de diálogos, a partir do objeto artístico contemporâneo, sobre o mundo que nos rodeia. Preparar uma exposição, devolvendo-lhe o foco da pergunta é, neste sentido, uma oportunidade de cumprir a missão que é, no fundo, o motivo da minha existência terrena.
EP: Estaremos todos à espera de algo, como a mulher do quadro Western Motel de Edward Hooper? Perdidos em lugares estranhos e tempos acelerados?
HMP: Edward Hooper estará, provavelmente, entre os artistas que mais admiro e ainda que reconheça essa abnegação do ser humano em ser autor da sua própria história, eu não sou assim. Não espero nada. Uma das coisas que aprendi desde muito nova, ainda criança, foi a ir à frente, a ditar o caminho. Lembro-me que na minha escola primária havia uma pequena área ajardinada junto ao muro que rodeava o recreio e que eu e as minhas três amigas brincávamos muito às voltas por ali e que, já na altura, eu tinha a mania de ir à frente e ditar o caminho. Fui sempre assim e continuo a ser assim. O meu único desígnio foi sempre o da liberdade plena, e com a liberdade, nessa medida, vem sempre uma carrada de responsabilidades, mas eu não tenho, nem nunca tive medo de nada. Nunca quis um emprego, mas construir uma carreira. Aprendi muito cedo a não ter medo e a tomar as rédeas. Provavelmente, em contexto profissional, essa minha característica dificulta o trabalho dos outros comigo, não o nego, mas sou alguém com quem se pode sempre contar e que resolve. Nunca fiquei à espera de nada nem que ninguém decidisse nada por mim e no dia em que tiver que o fazer, provavelmente, uma parte de mim já terá morrido.
EP: Novos conceitos surgem todos os dias ou existe uma reinvenção do já feito e já visto? O digital é a matéria – prima primordial do milénio? Ou existe uma simbiose com o biológico e orgânico?
HMP: Existe cada vez mais uma simbiose de conceitos e formas de estar. Não vivemos sem tecnologia mas procuramos cada vez mais uma alimentação livre de corantes e conservantes e essa dimensão do comum e do quotidiano alastra-se a todas as ações humanas, inclusive à criação artística contemporânea. Sobre o novo… É difícil, na área artística, criar hoje algo 100% novo, nunca antes visto, pelo menos se não dispensamos alguma honestidade intelectual. Mas é possível reler ,no tempo e no espaço, o acumulado de experiências e de resultados dos que nos antecederam.
EP: A arte é uma forma de resistência e reflexão sobre os tempos algorítmicos que nos colonizam?
HMP: Arte é liberdade e ser livre é resistir. Não há arte sem liberdade e não há liberdade sem uma atitude de eterna resistência aos dogmas e aos preconceitos sociais.
EP: Poderá um andróide ser capaz, num futuro próximo, exibir os seus trabalhos artísticos na Galeria Shairart em Braga ou na Bienal Internacional de Arte de Cerveira?
HMP: Tenho dúvidas. A arte é humana e é o que nos distingue, a nós seres humanos, de todas as outras criaturas biológicas ou tecnológicas que habitam o planeta. Não tenho nenhum medo da tecnologia porque tenho muita fé nos homens e na força das relações exclusivamente humanas.
EP: Como é que tem sido trabalhar com os artistas emergentes? Quais as dificuldades que sentem?
HMP: Eu não trabalho só com artistas emergentes e muito menos gosto de rotular artistas como emergentes ou consagrados. Gosto, acima de tudo, de criar diálogos e promover cruzamentos geracionais que proporcionem a valorização de artistas com tempos de vida e experiências diferentes. E gosto de lançar nomes novos para o mercado, baralhar a roda e quebrar o lobby. Quando alguém decide dar os primeiros passos no mercado da arte e procura o meu apoio procuro, acima de tudo, incentivar à literacia. Por mais estranho que isso possa parecer, muitos artistas (novos e menos novos) não lêem, não vêem exposições, não frequentam teatros, nem se interessam por qualquer tipo de expressão cultural, muito menos têm noções genéricas de história, geografia ou política. Não fazem ideia nem onde fica o Guadiana, nem quais são as principais feiras e exposições de arte do mundo. Sem isso não há qualquer conselho prático que valha. Não se pode querer deixar uma pegada artística no mundo, sem conhecer o mundo.
EP: O público segue o gosto dos outros ou já se sente uma educação cultural e cívica mais acutilante e crítica?
HMP: Há cada vez mais estratégias de educação e mediação cultural a serem proactivamente implementadas em museus e outras instituições culturais. Contudo, estas revestem-se ainda de práticas ultrapassadas e não são, em muitos casos, pensadas para todos os tipos de públicos. Neste domínio, há um oceano a atravessar e não o atravessaremos com um barco a remos, como estamos a fazer neste momento. Existem públicos e interesse dos públicos em compreender a arte contemporânea, mas é preciso que os agentes culturais, nas várias escalas de comunicação, ajam com vontade e mantendo uma visão 360º.
EP: Existem espaços culturais suficientes no norte do País? Ou precisa o público de ser itinerante para desfrutar de espectáculos diversificados como em algumas cidades europeias culturalmente fortes? Existe uma rede de parceiros públicos e privados ou a escala não permite maior diversificação da oferta cultural?
HMP: Há oferta suficiente, equipamentos suficientes e estamos num ponto em que atingimos, a norte, diversidade e qualidade nas ofertas de programação cultural. O urgente é organizá-las nos territórios e criar, para todos, oportunidades de comunicação e divulgação e, mais uma vez, é preciso não desistir da educação e mediação cultural. Não precisamos de mais, nem de melhor, de uma forma geral. Precisamos é que chegue a mais pessoas e que se vincule a estratégias de apoio à criação artística em território nacional.
EP: Na gestão cultural como se alia a escolha de espectáculos, eventos inovadores daquilo que as entidades públicas e privadas pretendem, muitas vezes movidas por interesses contrários à fruição cultural? …
HMP: Portugal tem neste momento três vícios narcísicos na despesa com cultura/entretenimento: as recriações históricas, as feiras de gastronomia e produtos locais e os títulos de “capital” de qualquer coisa. Parte da oferta cultural está politizada, poucos foram ainda os que perceberam que programar não é preencher a agenda e que esses grandes eventos (que derivam entre as recriações históricas de mau gosto, as feiras do fumeiro, as noites brancas e as capitais do pão-de-ló) não podem ser o único foco de ação nem de investimento público. A gestão cultural é uma disciplina complexa que implica, no seu exercício, que exista autonomia política dos agentes, leitura das características de cada território e estratégicas ajustadas aos contextos e aos objetivos. Infelizmente, muitos dos nossos políticos, em vez de apenas gerirem a causa política e munirem as equipas de profissionais adequados para cada função, aproveitam para promover as suas próprias feiras de vaidades e usar dinheiros públicos para a promoção de ações relacionadas com os seus gostos e lobbies e não com qualquer tipo de projeto âncora.
EP: A cultura sobreviverá aos destroços da ambição humana e destruição planetária que assistimos ou permitirá evitar catástrofes e proteger os mais pobres e excluídos?
HMP: A cultura e a arte sobreviveram sempre e só elas podem reduzir o número de pobres e excluídos.
EP: Muito Obrigado, Helena.