EP: A lógica do eco implica a replicação de um padrão e, no limite, a distorção dos significados?
JB: Não tinha em mente a distorção de significados mas sim a propagação da voz, e tudo aquilo que repetimos ou perpetuamos sem saber porquê. Primeiro soube que queria falar de ecologia, pois isso é o que sempre aparece quando me sento para escrever. Que há eco em ecologia, é uma evidência. Por outro lado, demoro muito tempo a construir mapas de ligações entre coisas que não estão obviamente ligadas, mas sabia que a ninfa e Narciso estavam no livro. Aquelas páginas do Metamorfoses já têm tudo! Há o fascínio dele pela sua própria imagem, a forma como ela é condenada a ecoar tudo o que ouve, mas sobretudo atraiu-me aquela forma de descrever a rejeição, em que não há nada senão o discurso dele. Depois de ser rejeitada por Narciso o corpo de Eco definha, até não restar nada senão a voz. Achei que o «Ecologia» podia ser só isto, é tremendo! Mais tarde compareceu à escrita uma solução formal, aqueles títulos que são eles próprios eco de outras partes do texto. Agarrei isso porque me fazia sentir que as palavras andavam em ricochete no espaço do romance. Finalmente, assumi que todas estas coisas estavam no mapa e de alguma forma interligadas e, chegando à recta final do livro, apareceram os cadernos de estudo dos ecos. Era uma síntese disto tudo.
EP: Nem a imagem vale mil palavras face ao empobrecimento do léxico?
JB: A imagem para mim é outra forma de texto. Não vale mais palavras nem menos palavras, é outra coisa. Palavra e imagem complementam-se, expandem-se, anulam-se, digladiam-se ou casam-se, depende, mas estão em relação. Talvez por isso nunca resisto em ter imagens nos meus romances, porque essa relação me fascina, sempre me fascinou. Às vezes olho para imagens como se fossem palavras alinhadas numa frase, e às vezes tento ler um poema e só vejo uma imagem.
Sobre o empobrecimento do léxico, não sei se o tenho como pressuposto. O que me interessou foi a maleabilidade das linguagens. Qualquer idioma está em permanente mutação, todos os dias morre uma palavra, todos os dias deve nascer uma palavra nova. Qualquer idioma é corrompido e enaltecido constantemente no linguajar de uma criança, de um estrangeiro – ou de um poeta, para esse efeito. Não sei se isso tudo resulta necessariamente num empobrecimento. É um estar sempre em jogo, e é bonito que o seja. Como em qualquer jogo, às vezes questionam-se as regras. Ou seja, mais do que um afunilamento das linguagens, o que vejo é um afunilamento das ideias, uma perversa monocultura da mente que espelha (ou é espelho de?) a monocultura empresarial – e voltamos ao mercado.
EP: Pagar para falar? Pagar para respirar?
JB: Para existir, para ter voz, para pisar essa areia, para mergulhar nesse mar. O mito do crescimento ilimitado, como forma do mundo querer ser, precisa que o mercado gere e invente novos mercados, e se aproprie de lugares que até ali não eram vistos como mercado. Falar, respirar... o que este livro pergunta é se ainda existe alguma coisa para lá dos limites do mercado.
EP: Mas mesmo que não se pague para falar, o que cada um diz já não tem um preço? Um homem livre é um homem pobre e só?
JB: Oscar Wilde dizia que um cínico é aquele que sabe o preço de tudo mas não sabe o valor de nada. É uma excelente formulação, sobretudo se pensarmos nela agora, reflectida numa sociedade de mercado onde é possível atribuir um preço a tudo e a todos, pessoas, corpos, transações e tempo. As palavras têm valor, aliás, valores, plural; mesmo quando não têm um preço. E em paralelo a tudo isto (mas não independentemente) há um estado generalizado de depressão, que a meu ver resulta de uma grande confusão na esfera do valor, da atribuição de valor, do ordenamento das nossas prioridades de vida. O que eu quis com «Ecologia» foi justapor estas coisas, estas formas de sugerir valor, e relacioná-las.
EP: O silêncio é a sexta feira negra das bolsas das linguagens? Interessa ao mercado que se promova a cacofonia e o psitacismo? Para criar medos, ansiedades, mecanismos de validação e imitação, para que homens e mulheres não saibam quem são e alguém fale por eles?
JB: É um dos paradoxos do nosso tempo. Se por um lado não podemos nunca esquecer que o silêncio, o não ter voz, não ter representação, é como não ter agência, é não existir politicamente; por outro lado, a cacofonia e as plataformas falsamente democráticas são uma forma de nos exaurir, de nos distrair e nos desviar de uma mobilização efectiva. Pertinente (penso muito na pertinência). Andamos todos muito indignados, mas é uma indignação que não gera indign/ação, que não resulta em protesto, exigência, ocupação e mudança. E isso está ligado à forma como hoje cada um de nós chega a ter voz, e como escolhe usá-la. Está ligado às redes sociais - estamos cansados de o debater - mas também a narrativas que nos são incutidas na publicidade e outros instrumentos pró-consumo de que somos todos únicos e especiais e que tudo o quisermos é possível (desde que gere consumo, lá está). Felizmente existem outras coisas a acontecer: a greve climática estudantil, por exemplo, tem sido para mim uma imensa fonte de esperança. A 15 de Março estive com aqueles miúdos na rua e percebi que tudo aquilo passou por grupos de Facebook e de WhatsApp, mas que estes foram somente um meio. O fim cumpriu-se: estavam na rua, eram muitos, bem organizados, e a exigir aos adultos consciência e mudança. E ainda não pararam, soube outro dia que planeiam outra para 24 de Maio. A internet uniu-os e não os dispersou. É possível!
Mas voltando à contradição presente no livro: o silêncio é um instrumento de opressão, mas o seu oposto também. Além disso, o silêncio aparece no livro como forma de atenção consagrada ao que nos rodeia. Estamos tão ocupados a expressar que não podemos ouvir. É a ideia que se nos calássemos chegariam ao discurso alguns interlocutores novos. Não-humanos.
EP: A pertinência de “Ecologia” resulta: “Só confiais no dinheiro? E se as palavras tivessem um preço?” Haveria mais responsabilidade e consciência sobre o que se diz? Em caso de escassez, os povos comprariam mais dicionários? Estou a lembrar-me do recente caso da corrida dos Portugueses às bombas de gasolina…
JB: No livro também se enumeram as consequências positivas do mercado da linguagem. Alguns exemplos: as pessoas param para pensar no uso e valor da linguagem; dão um passo para fora de si próprias e apercebem-se que não são o que pensam, e como as palavras estão cerzidas ao tecido do nosso pensar; recuperam-se línguas mortas e artificiais; protegem-se idiomas em extinção.
O exercício de dar valor ao que tomamos como garantido pode ser feito em relação a tudo no nosso quotidiano, da água potável que sai da torneira, ao «Bom Dia» que deixamos no café, à gasolina com que enchemos o tanque do carro. Num planeta com recursos finitos e alguns ameaçados, nunca é em vão fazer imaginar como seria se algumas destas coisas desaparecessem. Teria sido bom que tivéssemos aproveitado a greve e a corrida às bombas de gasolina para debatermos alternativas aos combustíveis fósseis, e a forma como a cidade está organizada em torno do carro. Na realidade, fomos sujeitos a 2 ou 3 dias de choque, e o facto de ter sido temporário fez com que a maioria não levasse aquilo a sério. No livro o choque é permanente, é uma mudança de paradigma. Mas o exercício de imaginação começa da mesma forma para os dois, ficção e realidade, temporário e permanente.
EP: Ecologia é um fresco da contemporaneidade. Uma distopia em constante actualização como a versão de um programa de computador. A Joana teve uma imensa coragem e honestidade intelectual de ficcionar o estado geral de um mundo a caminhar para o abismo. É esse um dos papéis da escrita? Alertar para os abandonos, para as instrumentalizações e para a perda de um horizonte humano em que a comunicação tornou-se um luxo?
JB: É um dos papéis da escrita, pode ser. Aquilo que me motivou a escrever este livro esta bem explícito no seu título. Depois o livro tem diversas camadas, diferentes histórias de vida, múltiplas perspectivas. Não sou eu quem determina os alertas que ele contém, é o leitor. Eu olhei para o mundo à minha volta - e escrevi.
EP: Orwell e Huxley reflectiram sobre o poder da palavra em algumas das suas obras. A Joana colocou-as a render. Há sempre uma ideologia para cada tempo? Um vocabulário para cada espaço de poder?
JB: Sim, ambos trabalharam a questão da linguagem ao serviço do poder e da ideologia. No livro falo um bocadinho da Novilingua de Orwell, mas há também o seu ensaio «Politics and the English Language» (de 1946) em que dá muitos exemplos da experiência quotidiana do inglês ao serviço dos interesses políticos de então. Esse também foi uma tema muito estudado no trauma póstumo do Holocausto, a forma como novas palavras e novas formas de falar geraram aquele perverso consenso. Aliás, é todo um capítulo de «Ecologia» que foi cortado. Há que confessar que eu passo mais tempo a cortar que a escrever. Muita coisa ficou de fora deste livro, uma delas foi a parte em que me debruçava nos diários de Victor Kemplerer. Este homem existiu, foi um judeu alemão que sobreviveu ao Holocausto graças a ser casado com Eva, ariana. Antes da ascensão Nazi era professor de Literatura e ao longo da guerra, manteve umas “Notas de um Filólogo” onde registava as mil formas como os Nazis se apropriaram do alemão e o puseram ao serviço da ideologia. É um trabalho espantoso. São coisas aparentemente simples, como as pessoas terem substituído a saudação “Guten Tag” por “Heil Hitler”... Simples, mas significativas. Depreciaram palavras como inteligência, cepticismo, ou ponderação, em favor de outras como crença, submissão, ataque, agressão... Dizer que alguém é um fanático (der Fanatiker) ou um seguidor (Gefolgschaft) era elogioso. O prefixo Groß-, de grande, era aplicado a tudo, assim como Volk- (povo, como no famoso Volkswagen, o carro do povo). Entre muitas outras ocorrências de engrandecimento, exacerbação e hipérbole. Estas ainda são fáceis de reconhecer hoje nos diferentes discursos políticos, a par com os eufemismos. Por exemplo, eu acho que «aquecimento global» nos serve muito pouco. É ameno e remete para férias de verão. Devíamos falar disto com um termo muito mais duro, muito mais catastrofista, muito mais urgente e assustador. A nossa linguagem quotidiana é um sem fim de eufemismos que mascaram os assuntos mais delicados. Aliás, fiz esse apanhado para o livro (p. 376).
EP: A linguagem não é um disfarce para o estado geral de abandono afectivo a que as pessoas foram relegadas? Não como consumidores ou ególatras, mas como seres humanos dotados de sensibilidade e carentes de empatia?
JB: A questão da solidão é muito próxima a tudo isto que temos estado a discutir, e se calhar não é mais protagonista neste livro simplesmente porque já é um livro com tantos protagonistas. Mas está lá. Pelo menos está lá na medida em que eu penso muito nisso, no paradoxo desta híper-inter-ligação uns aos outros, que nos deixa afinal tão isolados.
Vários estudos têm vindo a alertar para a forma como a vida mediada por ecrãs trunca o desenvolvimento da empatia e altera os ciclos de atenção. O instrumento muda a mão que o manipula, os ecrãs mudam a nossa forma de olhar, é um facto. Mas não esqueçamos: essas mudanças também trarão coisas boas. Vamos perder capacidades e ganhar outras. O que a mim me complica é a velocidade a que tudo isto acontece. Será que é possível um debate crítico e profundo acerca de todas estas novidades tecnológicas, se estamos sempre com o pé no acelerador, e avançamos com este espírito acrítico? Não se trata de abolir os instrumentos nem de deitar fora possibilidades, é só perceber se usamos os instrumentos ou se os instrumentos nos usam a nós.
EP: Muito obrigado.