Manuel Jorge Marmelo (MJM) é jornalista e escritor premiado. A conversa que se segue resultou de um amável contributo que deu à Estante do Porteiro (EP).
EP: Uma mentira mil vezes repetida a que verdade conduz?
MJM: O senhor Goebbels, suposto inventor da frase, faleceu como se sabe: escondido num bunker, suicidando-se com cianeto depois de matar a família inteira. Não me atrevendo a prescrever publicamente um fim semelhante para os praticantes actuais da repetição mentirosa, da doutora Cristas ao senhor Trump, passando pelo senhor Kim, tenho a certeza de que, de uma forma ou de outra, hão-de falecer também. Sendo esta a única coisa que é certa e verdadeira para todos, parece-me que é mais simpático ser recordado pela bondade do que enquanto facínora, aldrabão contumaz, vigarista, inadimplente ou energúmeno.
EP: Os factos tornaram-se matérias porosas na justiça e no jornalismo?
MJM: Os factos são velharias amáveis, mas cada vez menos estimadas ou respeitadas, aqui ou ali. Estou mesmo convencido de que já foram substituídas pelo click e pelo like.
EP: Face ao estado do mundo, nomeadamente com a errância dos lideres, a anestesia dos privilegiados e o desespero dos excluídos, não estaremos a despertar o primata da”irrealpolitik”? Não poderá um erro “pavloviano” conduzir ao abismo?
MJM: O risco é grande. Mas, se me ponho a pensar na qualidade dos imbecis que têm o dedo no botão do abismo, sou capaz de não conseguir dormir de noite.
EP: Durante muito tempo, infelizmente, queimaram-se livros e grande parte das populações ou não sabiam ler ou não tinham acesso aos livros. Agora, que existem milhares de livros e de autores, são poucos os que são leitores regulares. Como analisa este paradoxo?
MJM: A humanidade é paradoxal. Ao mesmo tempo que parece caminhar para algum lado, com algum sentido e objetivo, vai criando infindáveis multidões de comedores de lixo, comummente designados como “consumidores”. Poderia dedicar-me a analisar o fenómeno à luz dos considerandos da pergunta anterior, mas seria uma perda de tempo. Os alienados não estão interessados em ler esta entrevista nem em pensar sobre este assunto.
EP: Não será a busca do sucesso, a todo o custo, o primeiro sinal de fracasso de um escritor? Ou o artista não terá na morte um lugar bem mais seguro?
MJM: Não sou a pessoa mais indicada para responder a esta questão. Não espero falecer nos tempos mais próximos.
EP: As editoras precisariam de ler a obra de Karl Marx ou a Bíblia Cristã face à disparidade entre o número de horas gastas por um escritor e o que lhe pagam por força dos direitos de autor?
MJM: Não sei. Sou completamente desprovido de senso empresarial, mas, como em outras coisas na vida, só posso tentar resolver o problema pegando-lhe pela ponta que tenho mais à mão de semear. Pela parte que me toca, e tendo constatado o assinalável insucesso comercial do meu trabalho literário, entendi que, ao fim de vinte anos de esforço, me devo abster de produzir um bem que interessa a tão poucos clientes.
EP: Ou tudo se tornou um negócio, em que o escritor tem de seduzir o leitor como se de uma mulher com manual de instruções se tratasse?
MJM: Também não sei. É-me simpática a ideia de ser lido e acrescentado pelas leituras alheias, caso contrário nunca teria tentado publicar o que escrevi. Mas não posso enfiar os livros na goela de ninguém. Escrevo porque escrever me completa e me dá prazer e, ainda que me penitencie de tê-lo feito tão excessivamente, fi-lo com as melhores intenções, sem cuidar de enganar ninguém.
EP: Um computador, o deep blue, derrotou Kasparov. Será o escritor oprimido pelo algoritmo ou libertar-se-á, para sempre, dos números das vendas?
MJM: Apenas posso elucubrar sobre o meu caso, e já o fiz.
EP: Ainda existe espaço para a liberdade artística ou o cânone estabelece as fronteiras entre o que é literatura e o que não é?
MJM: A liberdade criativa é total. Ninguém me impede de escrever apenas aquilo que quero, quando quero e porque me apetece muito (desde que não espere viver disso). Não me inquietam o cânone, o mercado, as editoras ou a crítica. Questão bem diferente é aquela que diz respeito à possibilidade de querer ou poder publicar o que escrevo, e de ser lido por quinze ou por quinze mil pessoas.
EP: Os poetas e os filósofos deveriam governar o mundo em vez dos contabilistas e dos financeiros? Ou acha que tudo ficaria na mesma?
MJM: O mundo está cheio de poetas que batem na mãe e de filósofos que estacionam em segunda fila. Um filho da puta é um filho da puta, independentemente da atividade que pratica ou das habilitações literárias.
EP: Muito obrigado, Manuel.