EP: O pensador de Auguste Rodin está curvado com uma das mãos sobre o queixo. Que anjos e demónios o inquietam?
MJC: A figura de Rodin é a do melancólico por excelência, ensimesmado. Rodin esculpiu-o, representando Dante. É difícil adivinhar-lhe os pensamentos, mas, pela pose e pela tensão que lhe é imprimida por Rodin, poderemos talvez dizer que a sua mente está no mistério da existência ou concentrado na visão das «Portas do Inferno», tão perto do seu lugar, mergulhado no abismo da miséria humana, da sua finitude. Nele, a filosofia é uma demora de pedra.
EP: Pensamos muito e conhecemos pouco?
MJC: Eu diria que pensamos pouco e conhecemos ainda menos. Estou muito próxima do que Montaigne dizia acerca dos limites do conhecimento humano. E o mundo está cada vez mais reduzido no seu pensamento, com a dilatação da técnica e das tecnologias. É um paradoxo e não é de hoje. Raros são os que renunciam para poder pensar livremente, mas, ainda assim, nada lhes é prometido. Só a liberdade e a solidão.
EP: Como lidaria a famosa escultura com um telemóvel inteligente nas mãos, caso fosse insuflada de vida?
MJC: Não o compreenderia, de todo. Não sabia que utilidade teria, achá-lo-ia demasiado barulhento e intrometido na sua vida pacata de pensador. São coisas incompatíveis, a velocidade que hoje nos é exigida, à mercê dos telemóveis inteligentes, e a do pensador, mergulhado no seu mundo interior, silencioso e solipsista.
EP: Poderia esse pensador, animado pela tecnologia, habitar um quarto descrito por Franz Kafka? Em que tédio, desespero ou ilusão viveria este novo pensador?
MJC: Gosto de imaginar a hipótese. Mas o quarto de Kafka é o nosso quarto, somos nós esse Gregor Samsa, inventado por Kafka. Os incapazes de comunicar, de olhar, de sair para fora do quarto. E há nisso um desespero que tem algo em comum com o do pensador, uma melancolia comum, mas o pensador é, ainda livre, pode sair de si e olhar. O homem de Kafka é a criatura, esse estado miserável a que chegámos, prisioneiros de tudo quanto nos rodeia. O primeiro vive a ilusão do conhecimento, o segundo o desespero da solidão.
EP: O bem e o mal fazem parte do homem. São fruto de uma falha de pensamento, de uma falta de conhecimento interior, de um circuito neuronal ou de uma ira distraída de Deus?
MJC: Gosto de pensar como Platão, que dizia que, ainda que o bem seja uma ideia inata (faz parte do homem), o mal é dele privação, uma forma de ignorância, uma espécie de cegueira, se assim quisermos. Por isso, é o mal que constitui essa falha de pensamento. Claro que isso tem que ver com a natureza incompleta do homem e com o seu caminho (ou não) para o conhecimento interior. Há uns que se situam (raros) acima de outros.
EP: As personagens de Kafka e Dostoievsky vivem torturadas entre a tradição e a modernidade? E as personagens de carne e osso, que se cruzam nas alamedas anónimas das cidades, em que tortura se deleitam?
MJC: Mais dilaceradas, creio eu, com o desalento e a solidão das grandes cidades. Não há hoje qualquer relação com aquilo que foi o tempo de Kafka e de Dostoievsky ainda menos, creio eu. Unia-os a culpa e a expiação como modo de tortura interior, as suas personagens são roídas por essa culpa que nada redime. Hoje já nem há culpa nas personagens de carne e osso. Só o vazio e o exílio disso que foi a tradição. Mergulhadas no ritmo frenético e sem tréguas da cidade, automatizadas pelo capitalismo selvagem e tornadas indiferentes, diante de tanta informação e tanta banalização das imagens. Nunca houve, como hoje, tanta informação e tão pouca capacidade de julgar por si próprio. É monstruoso.
EP: A criação artística é um inferno com sentido? Arrancar raios de luz dos círculos da escuridão?
MJC: Tem sempre sentido, pois é o único modo de tentarmos escapar ao inferno. Senão como iríamos resistir-lhe? Não poderíamos nunca prescindir dessa procura da beleza ou deixaríamos de ser o que somos: humanos. Embora pobres, mas humanos e esfomeados.
EP: Que narradores criamos para nos afastar do espectro da morte? São as narrativas de poder, glória e amor-ódio que fazem da História Universal uma angustiante repetição? Como lidou Walter Benjamin com estas temáticas tão humanas?
MJC: Como lidou ele com as narrativas da história como poder, queres tu dizer…opondo-lhe uma visão descontínua da história e ao arrepio das narrativas fatídicas e que transformaram o século XX num inferno. Pondo-se sempre do lado dos «vencidos», das vítimas destas construções falsificadas da história. O caminho, dizia ele, era o da revolução, o único gesto capaz de travar o comboio da história que nos levava à catástrofe. Travar esse comboio significava também salvar a tradição e reactualizá-la, em lugar de caminhar em direcção ao futuro triunfante do progresso.
EP: Uma sinfonia de Mahler, um quadro de Klee e um filme de Visconti podem ser bons argumentos para negociar a eternidade com São Pedro? Ou basta ir a uma boa loja de ferragens?...
MJC: Não sei como se negoceia a eternidade com São Pedro. Mas imagino que poucas coisas possam ser usadas para tal. Se não for a arte e a literatura, o que poderá salvar a carne? Eu iria mesmo por aí: a 5º de Mahler, o “Anjo da História” e “Morte em Veneza”, de Visconti. Não podemos descer por aí abaixo ou então não acreditamos em nada.
EP:. É verosímil acreditar em tudo que pensamos? Ou acreditar com os olhos, ver as coisas belas deste mundo é o único consolo que nos resta?
MJC: Acreditar com os olhos é a condição primeira, neste universo em que a visão é o mais redentor dos sentidos. Mesmo se a beleza for terrível, se matar. O gesto salva-nos. Depois é a escuta do rumor secreto da língua e do mundo, que nos leva ao êxtase. São poucas coisas em que devemos acreditar. A beleza é uma delas, o bem é outra. E gosto de pensar como os gregos antigos o faziam, em que beleza e bem não eram um sem o outro, nesse altíssimo conceito de kaloskagathos.
EP: Muito Obrigado, Maria João.