EP: “Desertos“ é um livro emblema dos tempos que vivemos. A abundância de estímulos, a banalidade das relações (pela bulimia afectiva) e a anestesia crítica são sinais de um “estado geral de estupidez”?
RC: Todas as coisas desembocam na finitude. Se todas as coisas desembocam na finitude o deserto é constitutivo no tempo. Assim sendo, não existirão propriamente períodos de tempo “desertos” e outros períodos mais preenchidos.
De qualquer modo, há uma correlação directa entre a passagem do tempo e a desertificação. “Desertos” é um livro acerca da passagem do tempo, do modo como essa passagem desertifica não só as paisagens exteriores mas também as paisagens interiores. Nesse sentido, “Desertos” não é propriamente um emblema dos tempos que vivemos, corresponde sim a uma correlação simbólica com o correr do tempo em si. Com o correr do tempo vamos perdendo coisas. Coisas e pessoas, o que é o mais importante. Por vezes temos a impressão que perdemos umas e ganhamos outras. Essa sensação dá-nos algum sossego. Contudo, trata-se apenas de mais uma ilusão. Quando o tempo chega ao fim perdemos literalmente tudo, tornamo-nos edifícios ao abandono. A educação deveria de algum modo servir para possibilitar-nos essa convivência com o deserto, com o abandono. Mas a educação tornou-se apenas um mero engodo estatístico, um mero modo de nos levar a exercer-nos estatisticamente. Por outro lado, é evidente que a abundância de estímulos emperra o exercício da inteligência. Estamos cercados pelo ruído. Cercada pelo ruído a inteligência jamais germina. O silêncio e a solidão tornaram-se anátemas. Constituindo ambas condições indispensáveis ao germinar da inteligência e sendo-nos sonegadas, é inevitável que nos atolemos cada vez mais na estupidez. A eleição de crápulas como Trump e Bolsonaro constituem exemplos gritantes desse mesmo atolamento. Contudo, o principal problema é que quanto um crápula é eleito para governar um país com milhões de eleitores, há sempre milhões de estúpidos que o elegeram.
Os ciclos repetem-se. E. Talvez o vazio seja eterno.
EP: O que te levou a publicar estes “desertos“ com as fotos magníficas do António Caeiro? Criar novas paisagens na erosão dos tempos?
RC: A fotografia constitui um símbolo da ruína. Todas as fotografias são ruínas, correspondem a evidências do abandono. Mesmo as fotos dos momentos felizes sinalizam uma impossibilidade, a impossibilidade de a eles regressarmos. Nesse sentido, sendo um espelhamento da nossa situação de finitude, todo o livro repercute um estado de erosão. A erosão do tempo não se circunscreve à matéria. Não são apenas os lugares que se tornam outros. Nós próprios nos vamos transformando até ao irreconhecimento. É esse instante de irreconhecimento que está na origem do espanto filosófico. Como é possível o sendo daquilo que “é”? Como é possível mantermos uma mesma identidade no decurso da nossa existência se estamos constantemente a desembocar num outro de nós mesmos?
As fotografias do António mostram a ruína no seu modo mais cru. Só perante a evidência da ruína há possibilidade de nos reedificarmos. Todas as fotos já existiam antes da criação dos textos. Os textos que compõem o livro foram criados para estas fotos e perderiam significado sem elas.
A reedificação perante a ruína, é esse sentido da vida, o percurso de Sísifo.
EP: A escrita é um exercício de sobrevivência nestes tempos de imagens –vómito, gravatas girafa e penteados esquisitos?...
RC: Há uma luta que não é de agora. Uma luta constante entre o homem qualitativo e o homem meramente quantitativo. Para aquele que escreve a escrita é sempre um exercício de sobrevivência. É necessário sobrevir a estupidez. Talvez o exercício artístico constitua o único modo de fazê-lo. Neste caso, a luta é um processo dialéctico opondo a estupidez à inteligência. Depois, há uma espécie de sumo que sai. Há algo imaterial que perpassa tudo isto. Talvez possamos chamar-lhe espirito. O espirito é o sumo que resulta desse contínuo processo de luta entre a inteligência e a estupidez. É necessário lutar contra o “vómito, as gravatas girafa e os penteados esquisitos.” Trump, Bolsonaro e o outro senhor inglês são representações simbólicas da forma grotesca do homem quantitativo. A luta deve ser constante. Essa é uma exigência do espírito.
EP: Há 200 mil anos que o Sapiens não cresce mentalmente para outros ecossistemas. A biotecnologia, a genética e a computação levarão o homem a descobrir novos sentidos? Ou as miragens, as alucinações colectivas e as ilusões individuais continuarão a marcar o nosso horizonte existencial?
RC: Acho que a tua pergunta se relaciona com a questão filosófica essencial, a busca pela verdade, a busca pelo verdadeiro sentido das coisas. O problema é saber se a busca pela verdade, se a busca pelo verdadeiro sentido das coisas corresponde ou não ao estágio de uma doença. Se estivermos condenados à ilusão, como parece acontecer, não será a busca pela verdade o sintoma de uma doença vital?
Talvez haja uma altura em que isto se resolva. Talvez a biotecnologia e a genética possam transformar o humano numa outra coisa. Talvez os problemas que hoje nos assolam se tornem irrelevantes. Talvez a doença e a morte possam ser de algum modo colmatadas através da tecnologia. Mas mesmo que nos tornássemos imortais não deixaríamos jamais de estar perante problemas. Os problemas é que seriam outros. Viver para sempre não corresponderia a uma espécie de tédio para sempre?
EP: O homem está condenado à falha. O que leva a que a maioria não queira encarar a temática da mortalidade? A tecnologia tornou-se criadora de parques de diversão para enganar a condição humana? Que diriam os filósofos e os escritores, como Camus, por exemplo, desta encruzilhada?
RC: Sísifo somos nós. Transportando a rocha até ao cume da montanha para depois vê-la rolar montanha abaixo. Uma tarefa que se repete para sempre. O humano encontra-se em situação e a situação do humano corresponde ao encruzilhamento no absurdo. Além de encruzilhados no absurdo, estamos sitiados perante a finitude. Quando nos é dado escolher entre uma verdade terrifica e uma ilusão tranquilizante, qual é a “verdade” que escolhemos? A ideologia capitalista cria uma situação de neblina que nos impede de ver o que quer que seja. É “normal” que, entre uma verdade terrífica e a anestesia, as pessoas escolham ser anestesiadas. Somos cegos. Se os cegos tradicionais sofrem de cegueira escura, nós sofremos de cegueira branca. O espirito consumista corresponde a uma espécie de seguir sempre em frente. Nesse seguir sempre em frente não há possibilidade de tropeço. Na aquisição há sempre esperança. Onde há sempre esperança não há lugar para o instante do tropeço. Depois do último modelo Samsung Galaxy virá um outro, e assim sucessivamente. O homem contemporâneo é o homem sem qualidades, e o homem sem qualidades é uma criança cega brincando num parque de diversões.
Ao que me parece, Camus repetiria sempre o melhor parágrafo alguma vez escrito: “Existe apenas um único problema filosófico realmente sério: o suicídio. Julgar se a vida vale ou não a pena ser vivida significa responder à questão fundamental da filosofia.”
EP: Nestes novos anos vinte, existe esperança para que o deserto acabe? Ou é sempre a miragem?… A mesma história de sempre como o filme “ Casablanca” ilustra?
RC: Sendo constitutivo no tempo, o deserto não acaba enquanto o tempo não acabar. Somos nós que temos que nos adaptar ao deserto e não o deserto a ter que adaptar-se a nós. Rick será sempre o cais que vê Ilsa partir.
EP: Que projectos tens e que queiras partilhar com a estante para além do livro manifesto ”desertos”?
RC: Tenho uma série de outros livros. Uns já escritos e outros que se vão escrevendo.
EP: Muito obrigado.