EP: Qual o momento fundador em que descobriu que queria seguir as artes de palco?
RC: Foi quando comecei a trabalhar com o João Fiadeiro em 1999. Ele na altura estava a desenvolver uma metodologia de trabalho, a composição em tempo real, e fiquei fascinado com essa ferramenta. Não se tratava de preparar algo para depois representar, mas de criar as condições para fazer uma pesquisa em palco, à frente do público. Na primeira peça em que trabalhámos juntos, “O que eu sou não fui sozinho”, ele convidou-me para o apoiar na dramaturgia, mas acabei por entrar em palco. Tudo partia de uma conversa informal, em que eu explorava as minhas memórias, e as coisas que partilhava com o público não eram preparadas, aconteciam ao vivo, em tempo real. O próprio exercício da tomada de consciência acontecia em palco, já durante os espectáculos, e a partir daí exploravam-se áreas ainda mais estranhas, como o processo do inconsciente a levar-nos por caminhos em que eu nem fora do palco alguma vez me atrevi a ir. Para mim foi uma experiência perturbadora e surpreendente, mas que ao mesmo tempo me deixou muito curioso. Havia uma série de dimensões da minha psique, do meu corpo, da consciência ou falta dela que tinha da minha identidade e da minha imagem que eu desconhecia e que, em palco, perante um público, vinham à superfície. Durante esses três anos em que trabalhei com o Fiadeiro, fui convidado para trabalhar com um bailarino romeno, Manuel Pelmus. Trabalhei com ele e os seus bailarinos em Viena, Bucareste e Paris. Depois, quando voltei, fui convidado por outro coreógrafo, o Miguel Pereira. Então apercebi-me que estava a criar um enorme caixote do lixo de ideias que não estavam a ser exploradas. Foi quando decidi reciclar essas ideias e comecei a fazer o meu próprio trabalho.
EP:Algum actor, realizador ou dramaturgo que o tenham influenciado no seu percurso criativo?
RC: Inicialmente foi mesmo só o Fiadeiro. Mas depois comecei a pensar como abordar o meu teatro.Tinha a ideia de que a principal matéria era para ser trabalhada ao vivo, recorrendo à memória do momento, ao instinto, à relação de partilha com o público, e como é que as pessoas muito concretas que estão à tua frente te vão condicionando. Mas isso tinha de ser preparado na mesma. Comecei então a estudar, de forma mais analítica, alguns artistas que sempre admirei:o trabalho de Kiarostami, na forma como manipula actores e não actores, dirigindo-os já à frente da câmara; o filme de Victor Erice “O sol do Marmeleiro”, sobre o pintor Antonio Lopez, e a forma como ele tenta acompanhar no processo de pintura o crescimento da árvore que lhe serve de modelo; os filmes de Ozu, por se concentrar no mesmo universo de personagens de subúrbio das minhas histórias;Nabokov e Proust, pelo trabalho sobre a memória a partir de associações e acasos; Mizoguchi, pela forma como explorava dramaticamente a composição cénica, as movimentações e a gestualidade no espaço; Pedro Cabrita Reis, pelo uso de materiais disponíveis, que se encontram ao acaso nos locais de trabalho, e que são reciclados para a cena. Finalmente, de todos os mais importantes: John Coltrane, Charles Mingus e Eric Dolphy. Partindo de frases muito simples, quase elementares, eles improvisam depois, explorando soluções formais, a memória da sua relação com a história da música, mas também a ideia de uma “escrita” que vive da espontaneidade do momento, e que também desenvolve os seus próprios temas, motivos, padrões, digressões, etc. Em cada trabalho concentro-me num diálogo com outros artistas e linguagens, mas seria saturante mencioná-los a todos.
EP: Quais os projectos que neste momento está a trabalhar? E quais aqueles que mais gostou de criar e /ou participar?
RC: estou agora a preparar um monólogo com o Joãozinho da Costa, um intérprete com quem venho trabalhando há perto de 4 anos e que já entrou em outras quatro peças que fiz. Será um solo baseado nas suas experiências de vida, e em que eu lhe proponho a criação de frases coreográficas a partir de temas de jazz, nomeadamente do “Giant steps”, do Coltrane. O Joãozinho também deu passos gigantes. Primeiro porque é muito alto, tem quase 2 metros, e depois porque vem de muito longe, nasceu na Guiné, e já fez muitas coisas.
As minhas peças partem sempre de motivações muito pessoais, e por isso são todas especiais para mim. Mas o solo “Dentro das palavras” (2010) foi a peça em que eu descobri o meu teatro, o meu estilo, as minhas ideias e caprichos. No que respeita a colaborações com outros artistas, recordo sempre com muito carinho “Untitled/Still Life”, com a Ana Borralho, o João Galante e o Cláudio da Silva. Esse trabalho resulta de uma herança de termos trabalhado juntos no “Existência” (2002), com o Fiadeiro, e é assim a nossa versão a 4 da composição em tempo real. É uma peça em que os intérpretes estão - como dizê-lo? - camuflados entre o público, e vão convidando as pessoas para uma sessão de fotografia. O espectáculo é a criação de um álbum de família, já que tudo o que vai acontecendo nos permite criar uma relação de proximidade com os espectadores.
EP: Como diagnostica o panorama das artes em Portugal?
RC: Não posso fazer um diagnóstico porque só consigo acompanhar algumas coisas, muito poucas. O meu trabalho absorve-me cada vez mais e não tenho uma perspectiva geral do que se passa à minha volta, que é muito. Sinto talvez que há demasiadas propostas para o público que existe, e para os recursos disponíveis. Há demasiados trabalhos a serem apresentados uma vez e depois a desaparecerem, sem que haja um público, um discurso crítico a fazer a sua digestão. A ter condições para avaliá-lo. Chegou se calhar a altura de as cidades investirem mais na manutenção e recuperação dos equipamentos existentes, e em financiarem programas que promovam não apenas a apresentação de espectáculos, mas também uma relação mais orgânica com o público, que envolva formação e participação em projectos artísticos. A sociedade moderna depende cada vez mais de soluções criativas, e isso não é um talento inato, é mesmo uma prática que se desenvolve, é um modo de nos relacionarmos com os problemas e oportunidades que se nos apresentam.
EP: Muito obrigado, Rui.