Rui Zink (RZ) é professor e escritor. A conversa que se segue resulta de um generoso contributo que deu à Estante do Porteiro (EP).
EP: Como lidar com o sofrimento do outro? Onde está o ponto de equilíbrio entre a empatia e a preservação do ego?
RZ: A empatia é talvez o melhor da humanidade: a capacidade de nos pormos no lugar do outro, de entendermos num misto de pensamento e emoção o lugar e o ponto de vista tanto dos nossos próximos como dos distantes – e até dos nossos inimigos. É o maior combustível para a paz, o amor, a amizade, a fé – até para uma boa cama. É uma energia boa que, como todas as energias, em excesso pode acabar por ser mais nociva que benéfica, como a água que nos dá vida mas, em certas ocasiões, pode ser uma força destruidora. Há, sobretudo nos jovens de esquerda, uma sobredose de empatia que pode virar perigosa: o amor total e absoluto e indiferenciado «a toda a Humanidade», com agá maiúsculo. Todas as vidas valem o mesmo, mas para um pai a vida do seu filho vale mais que a dos outros – e isto não é egoísmo, é essencial para calibrar a generosidade. Os que não distinguem acabam não a fazer bem a a toda a Humanidade, mas a desprezar o mal feito aos próximos. Lembro, com arrepios, o que uma moça escreveu no Facebook, a propósito da morte de duas crianças num acidente em Portugal: «O que me importa a vida de duas crianças em Braga, quando há milhares a morrerem no Sudão?» Ainda estou arrepiado.
EP: Uma decisão é independente da certeza e do consenso? Uma decisão é sempre racional? Ou não?
RZ: Uma decisão nunca é racional. Mas, num humano, também nunca nunca é racional.
EP: Depois da extensão, da substituição e da actualização qual a fase seguinte da tecnologia e do nosso futuro? Qual o horizonte de evolução para o” Sapiens” ?
RZ: Boa pergunta. É um assunto para o qual não tenho resposta – e tenho medo dos que têm resposta. A nossa identidade é sermos fluídos, somos a espécie que melhor evoluiu e mais se adaptou a todos os desafios colocados, tanto quanto sei. A nossa fraqueza sempre foi o nosso forte: ao contrário dos outros seres vivos, usamos elementos exteriores para ganharmos poderes. Tiramos e pomos roupa consoante está calor ou frio. Usamos bilhas de oxigénio e palminhas para fazer mergulho e asas de tecido para fazer asa-delta. E até inventamos computadores mais inteligentes que nós para gerirem a nossa economia e nos vencerem ao xadrez. O problema é que tantas vezes o cântaro vai à fonte que… Mas sou optimista: no futuro, será humano quem se considerar humano e tiver outros humanos a reconhecer que é humano.
EP: A Invisibilidade promovida pela tecnologia desresponsabiliza os seus usuários ? Este comportamento pode ser considerado um tique fascista?
RZ: Não iria por aí. Todos nós somos melhores e piores do que nos julgamos. O cobarde é capaz de, um dia, ter gesto de heroísmo. Esta é uma questão ética que vem de longe: como ser decente quando ninguém está a ver? Denúncias anónimas sempre houve. O fascismo é, entre outras coisas, apenas um nome mais para os nossos impulsos mais rasteiros e predatórios.
EP: A ruína é um intermediário da arte? O que foi belo agora é feio?
RZ: A ruína foi, para os românticos, o encontro entre a natura e a cultura, entre o natural e o humano. Um castelo em ruínas é ao mesmo tempo uma derrota da técnica, uma revanche da natureza e uma vitória para a arte: em ruínas, o castelo já não serve para nada (já não impede os inimigos de entrar) e então, ao olhar humano, vira a suprema arte, uma espécie de cópula perfeita entre a vontade humana e a mãe natureza.
EP: De que forma a linguagem influencia o poder e vice-versa?
RZ: Quem toma o poder quer sempre ter o controlo da linguagem. Há toda uma literatura sobre o assunto. A mim interessa-me muito, e escrevi sobre isso n’A Instalação do Medo’ (2012) e noutros livros, mas já antes Maquiavel, Swift, Orwell, Barthes e tantos outros tinham abordado o assunto. Repare na linguagem de guerra: ‘terrorista’, ‘cobardes’, ‘monstros’ são sempre os outros. Nós, quando obtemos os mesmos resultados, fomos sempre ‘justos’, ‘inteligentes’ e ‘humanos’. Se eles vitimam civis é a prova da sua crueldade; os civis mortos por ‘nós’ são só ‘danos colaterais’. E hoje todo o discurso em sociedade é de guerra permanente (como preconizou Orwell), publicitário, propagandístico, evangelizador. Daí que, para mim, o trabalho do artista já não seja só fazer ‘belos textos’ mas também o desmontar da máquina retórica que paulatinamente nos tritura.
EP: Qual o papel do amor e do desejo na formação de identidade?
RZ: Para mim, todo. Esta é a resposta seca. Agora vou desenvolvê-la um pouco: nem toda a gente tem noção do que um amor bem-sucedido no início da juventude tem sobre as sinapses e a saúde e a inteligência e a viagem de corpo e mente até ao momento em que (sabemo-lo desde que nascemos) seremos desligados. Se esse amor conjugar as felicidades espiritual e física, maravilha. Mas nem sempre isso acontece. Convém no entanto que os jovens tenham maravilhosas experiências de enamoramento e coito (mesmo que não com a mesma pessoa), a fim de partirem fortalecidos e com optimismo para um futuro e lidem, quando a ficha lhes cair em cima, o melhor possível com as inevitáveis frustrações e dissabores que a vida inevitavelmente nos traz. Um/a jovem que tenha tido um amor feliz (e coitos supimpas) lidará menos mal quando descobrir que o marido/a esposa anda há um ano a passear por fora.
EP: Muito Obrigado, Rui.
R: O prazer foi meu.