Uma viagem pelos prazeres da leitura numa conversa animada pelos néctares dos deuses e pelas palavras dos génios amarantinos.
Hostel Des Arts, Amarante
16 de Dezembro de 2017, 17h
Organização: Hostel Des Arts em parceira com a Estante do Porteiro
Nota prévia: A linha editorial deste petisco é exclusivamente vista do ponto de vista de um leitor curioso que tem uma estante, é porteiro e temporariamente albergado sob este tecto cheio de histórias em defesa da arte, que não é mais que a vida em estado de magnificência. Muito obrigado aos presentes e ao Hostel
Teixeira de Pascoaes nasceu a 8 de Novembro de 1877 e morreu em 14 de Dezembro de 1952. Passam 65 anos e dois dias da sua morte , a devida vénia ao mestre!
Agustina Bessa-Luís ( nasceu em Vila Meã , Amarante) em 15 de Outubro de 1922 e continua a olhar-nos…
Agustina partiu e Teixeira de Pascoaes, apesar de múltiplas viagens , vai ficando entre S.João de Gatão e Amarante . No entanto, ambos se deixam inspirar pela terra que agora calcamos e calcorreamos na procura dos segredos, desvendar mistérios e forças ocultas espessas e expressas na bela neblina amarantina fotografada magistralmente por Eduardo Teixeira Pinto, por exemplo.
Quando em 1948 lançou a sua primeira novela, Mundo Fechado ,Agustina tinha apenas 26 anos , mas não se remeteu ao anonimato. Enviou o livro para os maiores escritores vivos da altura: Miguel Torga, Aquilino Ribeiro e Teixeira Pascoaes, tendo este ficado muito bem impressionado com a prosa de Agustina dedicando-lhe palavras elogiosas dignas da grandeza dos mestres .( nem concessões ao realismo, nem ao romantismo ....)
Eduardo Lourenço considerou Agustina uma voz única, Óscar Lopes como barroca e António José Saraiva colocava-a no mesmo altar que Fernando Pessoa.
Quanto a Teixeira de Pascoaes, Vitórino Nemésio louvou o génio pastoril. Disse em 4 de Abril de 1951 acerca de Pascoaes”…A poesia serrana de Pascoaes aproxima-se mais do eremita da Arrábida pelo gosto ermo e pela fundura religiosa, da de Camões pelo timbre pagão e às vezes em certos traços épicos à escrita de Alexandre Herculano…”
Mas Jorge de Sena, desassombrado como sempre, relatou aquilo que é intemporal, dizendo: “…o génio nem sempre é reconhecido em vida, muito menos pelos seus conterrâneos e os contemporâneos , quando fala de intencional silêncio e em elogios pedantes, injustiça e incompreensão…”
Sem dúvida que Pascoaes tem de ser lido às novas gerações, nas escolas e não remetido só aos círculos restritos ,porque a sua poesia influenciou muitos e marcou o século XX português. Estarmos aqui hoje é uma forma de o homenagear, bem como Agustina, sem estar comprometido com poderes nem modas nem vaidades. Só pelo prazer da leitura , o que já não é pouco, diga-se de passagem…
Mas Jorge de Sena encontra em Pascoaes ainda a transmontana sentimentalidade de Camilo , a nirvânica abdicação em Antero e o rumorejante encantamento indignado em Junqueiro
Miguel Unamuno dizia que ele era “ todo un hombre” tão bem retratado por esse outro Amarantino António Carneiro, que com Amadeo Souza-Cardoso são nomes maiores da pintura portuguesa do fim do século XIX e princípios do século XX, um pela continuidade e outro pela ruptura dos cânones estéticos vigentes.
A produção literária de Pascoaes e Bessa-Luís é tão profícua que o fio condutor deste nosso encontro será sinteticamente exemplificado por excertos textuais ( porque a obra dos dois é imensa e o tempo para "petiscar" não deve entupir o apetite para o jantar) .Utilizaremos a obra matriz da autora, a Sibila e por alguns poemas de Pascoaes ( Os fabulosos marânus e elegia do amor são os mais pop).
A sibila é um rendilhado lexical em que as palavras , muitas delas comidas pela aceleração dos nossos dias, remetem para um mundo em estado bruto pincelado de ironia, humor e fino recorte literário, vejamos na página 56(Edição Relógio de Água, Julho de 2017( ( leituras)
Sibila é Joaquina ou Quina, uma mulher que vem da bruma do tempo, com uma sabedoria empírica , da vida doméstica de gerir a casa ( da Vessada). A sabedoria nela remonta de um não lugar ou de um lugar desconhecido, como as sibilas da mitologia, quer as da tradição grega quer a latina.
Esta condição humana, adivinatória versus divinatória mas também dramaticamente mundana que Pascoaes sempre soube esculpir, retirar da pedra filosofal algures perdida no Marão ou despida , beijada pelo Tâmega … Olhando para o infinito para interrogar as cousas humanas , insuflado por um animismo para alcançar a utópica fórmula definitiva para a vida ou padecer de um consolador panteísmo.
Pegando neste inferno e expiação , que é intemporal, interrogação, insinuação misteriosa, intuições heréticas, representação alegórica e ocultação pascoalina , a psicanálise explicaria que o animal que há dentro da cada um não se deixa dominar pela ordem cósmica das estrelas e que a escuridão é primeira das claridades.
Agustina, também ela, descodificou , um certo viver , uma certa época , aparentemente remoto visto à luz dos nossos dias, que Pascoaes elevou ao conceito mais depurado e cristalino .
Somos todos hoje vítimas do inconsciente colectivo do passado , de arquétipos, tiques e manias que Jung soube tão bem identificar no seu trabalho científico . Não se encontra hoje uma mulher de bigode como antigamente e hoje os homens rapam os pêlos.... Que diria a sibila , com os seus dons de vidente, sobre os tempos que vivemos…
Vejamos na página 57 e 58(ob.cit ) a anunciação do que seria o livro porque nas 56 páginas anteriores Agustina inseri-nos na ambiência do livro.( leituras)
E como é que Pascoaes vai buscar aquilo que Agustina dizia nestas frases quase ensaísticas, o que se distingue para lá das montanhas ?, qual a sombra de fumo, de pó ou de nuvem? o que na floresta conhece o rasto animal em tempo de caça ou tempo de amores. ?
Vejamos a resposta de Pascoaes, numa intertextualidade surpreeendente:
Dos versos pobres, 1949, Dosúltimos versos , 1953 retirados do VI volume das obras completas de Teixeira Pascoaes, Edição especial da Livraria Bertrand 1973) ( leituras)
E para terminar um texto escrito por Jon Bagt em singela homenagem a Amarante, berço deste nosso petisco literário “ arrabanado” face à proximidade do natal, esperando que muitos se sigam , se os deuses quiserem e a vontade dos homens e das mulheres assim o permitirem. Muito obrigado mais uma vez a todos!
Amarante : Uma visão...
Amarante deita-se sobre as encostas apertadas do Marão e refresca-se nas águas do Tâmega. O verde desce do seu leito até a floresta onde ninfas e sátiros pintam os lábios do diabo.
Nas ruas da cidade, a vendedora de couves amola a sua faca na roda do tocador de flauta enquanto o jovem poeta canta o amor doce à senhora das lérias abençoada por São Gonçalo, conhecido mestre-de-obras e hipnotizador de juntas de bois adornadas de redes wi-fidelicadamente conectadas sobre os cornos de silicone.
Pedras voadoras juntam-se sob a cúpula solarenga do Convento onde Amadeo Souza-Cardozo pinta o retrato de Teixeira de Pascoaes. O fumo do cigarro adensa-se na ponte nas horas de dormência dos sentidos.
Nas faldas do Douro, do Minho e das Beiras, Amarante estende-se na sua poltrona à espera de ser mimada pela música dos bombos de verão ou pelas carícias de um saxofone vadio. O diabo tem tempo de piscar o olho à sua diaba e não esfrega o olho sem as badaladas do Santo.
Às horas de prazer, onde a noite tem mil olhos, seguem-se os dias de trabalho. A tranquilidade das horas e a placidez bucólica dos seus recantos mágicos marcam o ritmo da cidade. O metalúrgico lava as mãos numa fonte perto do colégio da filha, o programador informático negoceia os números primos com o peixeiro - sinaleiro ou a jovem cientista casa com o marceneiro depois de se conhecerem na limpeza do altar de talha dourada na igreja altaneira.
Mil e uma luas chamam por ti… Amarante encarna a substância do tempo e resgata as almas do purgatório da vida moderna.
Amarante é o único local sobre a Terra onde o diabo vive no paraíso...