A opinião da minha mulher era de que eu pensava que era eterno. Eu sei que não sou. E já há muito tempo que essa espécie de pretensão absurda e quase poética deixou de ter cabimento. Sei que estou a prazo, um prazo limitado. O pouco ou muito que eu tinha de fazer neste mundo está feito ou não está feito.
Com a morte da minha mulher entrei num outro tipo de espaço. O espaço verdadeiro do diálogo silencioso que eu tenho com alguém que já está num tempo fora deste tempo. É o absoluto silêncio, de que todos nós, num momento ou noutro, partilhamos. Sempre nos morreu alguém. Sempre nos morrerá alguém, sempre morrerá alguém a toda a gente. Nós só somos verdadeiramente quando esse alguém que contava para nós já não existe. Essa é o verdadeiro fim de tudo.
Vivo esse silêncio na memória da recordação, na memória, na imagem, sempre com o sentimento da absoluta perdição e ausência.
Do que me arrependo na vida? De quase tudo. Mas a única coisa de que me arrependo verdadeiramente é de não ter estado à altura da pessoa que encontrei na minha vida e que a marcou para sempre.
Eu não tenho futuro. Já não o encaro.
O que mais me surpreende? Estar vivo.
O que mais me surpreende nos outros: a autencidade. Cada pessoa é um mundo. Mesmo as pessoas que têm momentos de menos visibilidade e relevo, as pessoas são um mistério a que nunca daremos a volta.
Ninguém pode dizer que a morte não assuste. Mas, curiosamente, com o tempo a morte vai ser aceite, não só como inevitável mas pode adquirir... mudar de signo, mudar de sinal, se essa morte é a morte do outro. Ninguém vive a sua morte. A nossa morte não é vivida. É sempre qualquer coisa que nos é imposta, em absoluto, de fora para dentro. A morte do outro, essa é a nossa morte.
Sonhos? Nunca tive muita imaginação, se não seria ficcionista. Os meus sonhos são os sonhos que se corporizam nos diversos tipos de criação e outros que são sonhos materiais. O maior do sonho é mesmo o da música. A música é ter uma vida sobrenatural sendo seres mortais como nós somos. A música é um milagre.
Ser recordado já uma benção de que nem todos podemos estar garantidos.
É a vida. Não há definição exterior à nossa própria vida, ela não tem exterior. Nós somos a nossa vida, não temos outra definição, é esta. Olhando para trás, vejo-a com espanto - de que ela não possa recomeçar.”
Excertos de uma das muitas entrevistas que colecionei de Eduardo Lourenço, esta no podcast A Beleza das Pequenas Coisas (do Bernardo Mendonça, no Expresso: https://expresso.pt/…/2020-12-01-A-unica-coisa-de-que-me-ar…)
"....Há algumas semanas, um engenheiro, responsável e responsabilizado na liquidação frutuosa dos erros dos outros, resumiu numa síntese insuperável a essência da realidade portuguesa: somos um povo de pobres com mentalidade de ricos. Se tivesse acrescentado qualquer coisa como «ricos pobres», ou ricos imaginários, teria resumido oitocentos anos de história pátria e dado uma última demão no diagnóstico célebre da nossa «intrínseca loucura» lavrado por Oliveira Martins. O comportamento descrito pelo lúcido engenheiro é tão orgânico que se tornou invisível, como tudo quanto é normal. Apontá-lo é um insulto à nossa celebrada maneira de estar no mundo, que é, naturalmente, a melhor do mundo, por ser nossa e por não podermos conceber outra.
Empiricamente, o povo português é um povo trabalhador e foi durante séculos um povo literalmente morto de trabalho. Mas a classe historicamente privilegiada é herdeira de uma tradição guerreira de não-trabalho e parasitária dessa atroz e maciça «morte de trabalho» dos outros. Não trabalhar foi sempre, em Portugal, sinal de nobreza e quando, como na Europa futuramente protestante, o trabalho se converte por sua vez em sinal de eleição, nós descobrimos colectivamente a maneira de refinar uma herança ancestral transferindo para o preto essa penosa obrigação. É mesmo essa a autêntica essência dos Descobrimentos, o resto, embora imenso, são adjacências. Hoje, com o suspeito «illitchismo» a servir de farol progressista, esta colectiva fuga ao trabalho tem ares de profecia à rebours, serve de conforto aos herdeiros da fabulosa exploração do suor do próximo que tão lírica e contemplativa disposição lusa supunha e supôs, e sob outras formas, continua a supor. Na realidade, constituiu e constitui a trama da colectiva existência picara que por necessidade inventámos tornando-nos esses pobres com mentalidade de ricos a que o nosso engenheiro se refere.
Seria de uma provocação sem alcance exaltar o trabalho em si ou a ética do trabalho (dos outros), independentemente do contexto social onde se insere, tal como a ideologia puritana do liberalismo a cultivou. Mas mais grave ainda é esquecer o que há de positivo nessa apologia que na origem traz o selo de uma democraticidade realista oposta ao divino privilégio de não fazer nada e de se glorificar com isso. O tardio rebate do marquês de Pombal, que observara nações com classes dirigentes inseridas no processo de criação de riqueza, o fortalecimento, por exemplo inglês interposto, do sentimento de honorabilidade de que o Porto liberal será entre nós o símbolo, não puderam alterar substancialmente a tradição parasitária e picara de uma nação sem ricos que justificassem (no contexto da época) sê-lo, e que só podiam dar, ao resto do povo, o exemplo, ao mesmo tempo fascinante e insultuoso, de um escândalo com foros de milagre a copiar e imitar como se podia. Dos caldos de portaria ao burocratismo apopléctico do século xx corre um fio que, por escondido, não é menos grosso e grávido de consequências.
Colectiva e individualmente, os Portugueses habituaram-se a um estatuto de privilégio sem relação alguma com a capacidade de trabalho e inovação que o possa justificar, não porque não disponham de qualidades de inteligência ou habilidade técnica anáIoga à de outra gente por esse mundo, mas porque durante séculos estiveram inseridos numa estrutura em que não só o privilégio não tinha relação alguma com o mundo do trabalho mas era a consagração do afastamento dele.
Os Portugueses não convivem entre si, como uma lenda tenaz o proclama, espiam-se, controlam-se uns aos outros; não dialogam, disputam-se, e a convivência é uma osmose do mesmo ao mesmo, sem enriquecimento mútuo, que nunca um português confessará que aprendeu alguma coisa de um outro, a menos que seja pai ou mãe...
Costuma dizer-se que Portugal é um país tradicionalista. Nada mais falso. A continuidade opera-se ou salvaguarda-se pela inércia ou instinto de conservação social, entre nós como em toda a parte, mas a tradição não é essa continuidade, é a assumpção inovadora do adquirido, o diálogo ou combate no interior dos seus muros, sobretudo uma filiação interior criadora, fenómeno entre todos raro e insólito na cultura portuguesa. É a inserção do alígeno ou alógeno no processo da produção nacional que constitui a norma e institui o seu autor no papel de criador que nós entendemos sempre como invenção do mundo a partir de nada. Do nada que nos anteceda.
De onde procede tão calamitoso comportamento que não é apenas intelectual mas ético? Sem dúvida do divórcio profundo entre a minoria «cultivada», que vive em estado de guerrilha perpétua e só pode exceder a sua vontade de poderio com o recurso dessa efracção em fractura da produção portuguesa sem distância para se poder impor como «interessante», e a massa anónima do povo português que não participa nesse debate.
Depois do 25 de Abril, a possibilidade de participação dessas duas metades desiguais adquiriu um grau maior de verosimilhança, mas sob formas equívocas na sua grande maioria. Não é o povo que partilha agora melhor e com outro fervor da nova produção cultural, mas a franja escolarizada dele que já existia no antigo regime. De novo, aparece uma atenção de outro tipo que visa o povo, que conta inclusive com a sua hipotética colaboração, mas que durante muito tempo só poderá ser participação passiva, e não autodescoberta, quer dizer, autognose. A classe intelectual e o público em geral acedem a um grau superior de autoconsciência, com a descoberta de um Portugal oculto, por excesso de potência até, como excelentes filmes e algumas tentativas teatrais recentes o têm revelado (pensamos no famoso Trás-os-Montes e no teatro de Demarcy — Teresa Mota, Cornucopia, Grupo de Campolide, etc.) mas é necessário não ter ilusões excessivas quanto ao carácter dessa autognose.
Ela não é ainda radicalmente diferente do que representou no século xix o romance de Camilo, de Júlio Dinis ou Eça de Queirós. Destes três exemplos, acaso e contrariamente a uma tradição estabelecida, o mais realista (quer dizer aquele que possui o maior grau de autognose vivida) é o de Júlio Dinis... O Portugal do século xix parece-se mais (por dentro e até por fora) com o de Júlio Dinis do que com o de Eça. Mas só se parecerá consigo mesmo quando o olhar com que se fixará for como é, por exemplo, o caso da literatura e sobretudo do cinema norte-americano — e na Europa, do italiano —, o olhar mesmo do português, ou dos portugueses com a consciência adequada da vida do país em que realmente vivem e morrem — um olhar sujeito, quer dizer, o fim de um Portugal-objecto como é hoje para todos nós, que nos ocupamos da «cultura», a realidade portuguesa.
Eduardo Lourenço, in 'Labirinto da Saudade - Repensar Portugal (1978)'