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Enquanto a cidade dorme ( Texto exclusivo de Carlos Miguel Rebocho para esta página)

11/25/2017

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                   Durante um punhado de anos, o inferno dos prazos processuais obrigou-me a trabalhar em noites sucessivas adentro. O escritório situava-se no coração de Lisboa e o meu gabinete tinha uma janela rasgada sobre o Parque Eduardo VII, o Hotel Ritz e a Praça do Marquês de Pombal. Com o cair da tarde, eu assistia à coreografia do “alumiamento”: primeiro, os carros em passagem veloz; depois, os candeeiros de rua; por último, os pisos das empresas, apartamentos e quartos de hotel. O jantar era amiúde um bife com molho de café ao balcão do restaurante defronte – um prazer rápido, reconfortante e comportável. Pelas nove horas, regressava ao edifício, de modo a retomar os trabalhos, os quais findavam pela hora do último autocarro para Campo de Ourique, um pouco antes da uma da manhã. Obviamente, com estas rotinas, já conhecia cada uma das figuras de cena que povoam o Marquês de Pombal pela noite: polícias de turno, motoristas da carris, pessoas sem-abrigo, porteiros de boîtes manhosas, pregadores sem público, etc. Entre esses confrades, contavam-se, obviamente, os vigilantes do edifício. Por regra, os turnos eram assegurados pelo Sr. Fernando, pelo Sr. Eliseu e pelo Sr. Alberto.
                    O Sr. Fernando vivia na margem sul, fazendo um aparatoso trilho, entre cacilheiros, autocarros e metro, até chegar ao nosso edifício. No entanto, como tinha grande apego ao facto de viver defronte do mar, aceitava essa “via crucis” como um custo merecido.  O Sr. Fernando vestia-se com o aprumo de um militar. Certa vez, reparei que tinha uma âncora tatuada no braço. Era uma tatuagem a sério, antiga como uma cicatriz, que nada tinha a ver com a pseudo-rebeldia hoje em voga. O pai do Sr. Fernando fora um prestigiado estucador. Tão apreciado era o seu trabalho, que fizera obras em apartamentos de luxo em Paris e em Nova Iorque. Em casa, o Sr. Fernando tinha uma colecção interminável de folhas de papel vegetal com os desenhos para estuque do pai. O Sr. Fernando gostava de os desenrolar sobre a mesa, ao serão, cultivando o sonho de um dia escolher um para o tecto da sua sala defronte do mar.
                   O Sr. Eliseu era uma personagem que poderia ser esculpida em cerâmica Bordallo Pinheiro. Quando o conheci, os anos de longa carreira já lhe pesavam no dorso e, não menos, no espírito. De quando em vez, quando eu passava, já a altas horas, o pobre homem já cedera ao cansaço, dormindo como um frade após a ceia. Como necessitava de o acordar, de modo a que me abrisse a porta, aproveitava para brincar com ele, perguntando-lhe: - “O Sr. Eliseu acaso não viu um piano de cauda aqui passar?” O Sr. Eliseu arrogava-se alguns dotes premonitórios, tendo sido das poucas pessoas a quem a “débâcle” do Banco Espírito Santo nada surpreendera, posto que: “(…) a funcionária da agência de Odivelas já andava muito cabisbaixa…”.
                O Sr. Alberto lembrava-me vagamente uma personagem tirada de um filme de Scorsese, com os seus Ray-Ban para miopia. Era um homem cultíssimo. Vivia na Graça, onde mantinha uma colecção criteriosa de livros sobre os mais diversos temas. Sugeriu-me vários alfarrabistas, onde ele se apetrechava de livros a preços módicos. Deu-me também a conhecer vários autores. Certa noite, o Sr. Alberto quis-me levar a conhecer as entranhas do edifício, em especial, uma espécie de “piscina” subterrânea, construída nos anos 70, por engenheiros suíços, que permitia purificar o ar, através de um complexo sistema de ventilação. Ali, uns bons metros abaixo do solo, vi aquele lençol de água estendido sobre um fundo em pastilha azul. Já não há piscinas assim, a lembrar que o mar reflecte sempre o céu. O Sr. Alberto delirava com aquela ideia de uma pequena lagoa, que poucos conheciam, mesmo no centro de Lisboa. E deu-ma a conhecer.
               Quando mudei de emprego, despedi-me destes príncipes da nobre arte da vigília. Deixei um livro ao Sr. Alberto. Fiquei a dever um tecto de estuque ao Sr. Fernando e um piano de cauda ao Sr. Eliseu.
 
Lisboa, 24 de Novembro de 2017
 
Carlos Miguel Rebocho  
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