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ENSAIO SOBRE O LIVRO E A LEITURA DE ALBERT MANGUEL

9/19/2021

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​VALE A PENA LER!
Ensaio Magistral de Albert Manguel sobre a leituras e os leitores. ( algumas frases – destacadas pelo porteiro- e o texto na íntegra publicado na edição do Expresso de 4 de Setembro de 2021)
“…Sem leitores, a literatura é muda…”
“…Contudo, para o leitor que dá espaço ao acaso e que tenha poucas certezas, antes de chegar à última página, sobre o que um bom livro guarda para si, estes abrangentes e excessivamente ordenados armazéns são demasiado generalistas, demasiado diretivos, demasiado parcos em aventuras. Os verdadeiros leitores precisam de deambular por reinos menos ambiciosos e mais pessoais, regiões mais delimitadas onde possam abastecer-se e encontrar palavras que façam a diferença no seu frágil conhecimento do mundo…”
“…A leitura sempre foi para mim uma espécie de cartografia prática…”
“…Todo o leitor sabe que o livro certo nas mãos certas é um talismã para ultrapassar adversidades…”
“…Só através do ato de ler, e de mais nada neste mundo, é possível esta feliz imortalidade…”
UM ÓCIO LIVRE E HONESTO
Se o Paraíso é uma biblioteca, como espero realmente que seja, então de certeza que será moldado pelos entusiasmos individuais de cada leitor. Na biblioteca universal há pelo menos um livro para cada um.
TEXTO ALBERTO MANGUEL
Talvez a pandemia nos tenha tornado mais introspetivos. Isolados à força do mundo exterior, obrigados a viver longe dos outros seres humanos, mas tentando manter ainda assim uma espécie de vida social nas nossas celas solitárias, começámos (pelo menos alguns de nós) a praticar a vida ideal que António Ferreira recomendou ao seu amigo Manuel de Sampaio:
“Quanto, Sampaio meu, quanto mais vale,
Meu bom amigo, um ócio livre e honesto?”
Ler tornou-se (a acreditar nas estatísticas) uma ocupação mais comum nestes anos de confinamento, e constatamos que a arte da leitura tem sido objeto de uma discussão mais intensa, seja a nível local ou nacional. Neste mês de setembro decorrerá o quinto Encontro da Rede de Bibliotecas Escolares e Municipal de Seia; a Quinta Conferência Anual do Plano Nacional de Leitura 2027 está prevista para outubro, na Fundação Calouste Gulbenkian, versando sobre o tema “Presente — Futuro: A Política Pública da Leitura”; o Encontro de Literatura Infanto-Juvenil “Caminhos de Leitura XVIII” acontecerá em Pombal, no mês de junho de 2022. As mais de cem bibliotecas escolares de Lisboa organizaram, em julho passado, uma conferência online patrocinada pela Rede de Bibliotecas Escolares (RBE) e pela Câmara Municipal de Lisboa (Divisão da Rede de Bibliotecas — BLX e do Departamento de Educação). Em Leiria, os bibliotecários programaram para outubro o XIV Encontro da Rede de Bibliotecas Escolares. Outros municípios têm eventos semelhantes na forja. Claro que estas organizações promovem há muitos anos a leitura pública nas comunidades e nas escolas, mas parece-me que a perceção social do significado da leitura, para cada um de nós individualmente e para a comunidade, está a transformar-se. O professor Daniel Melo, da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas/Universidade Nova de Lisboa, analisando a leitura pública em Portugal entre 1926 e 1987, sublinhou a importância da associação das autoridades municipais a iniciativas comunitárias para viabilizar “uma política cultural sectorial dinamizada pela sociedade civil e assente nas comunidades locais mais desfavorecidas no que toca ao acesso ao livro e à leitura”. Desde os primeiro meses de 2020, esta dinâmica parece ter crescido e acelerado.
E, no entanto, permanece a pergunta: o que é este “ócio livre e honesto”? Por que motivo é tão estimulante e eficaz em tempos de aflição? Descrever a leitura como um prazer é sem dúvida dizer pouco. Para mim, a leitura é a fonte de todos os prazeres, dá cor a todas as experiências, tornando-as de algum modo mais suportáveis, mais razoáveis. Em português, o verbo ‘ler’ partilha felizmente a sua etimologia com o verbo ‘ajuntar’. Quando desejo compreender alguma coisa que me tenha acontecido, o meu pensamento “junta-a” a algo que eu tenha lido. Se nem sempre encontro um modelo para todos os acontecimentos, sei que o problema não está na leitura, mas sim em mim, por não ter chegado ainda à página certa, ou por já a ter lido mas não me lembrar dela. Talvez, para um leitor mais sábio, qualquer página de qualquer livro contenha respostas ou explicações; talvez nenhum texto, por muito pobre que seja, deixe de refletir o universo. O modo como leio é, contudo, muito mais limitado e os livros em que mais frequentemente procuro pistas úteis são “Alice no País das Maravilhas”, os contos de Borges, “Dom Quixote” e os poemas de São João da Cruz. Sou incapaz de imaginar a vida sem eles.
Estas listas de leituras são proveitosas porque nos ajudam a identificar os nossos amigos. Por exemplo, sei que serei amigo de um leitor que confessa adorar “O Mandarim” e que levaria este livro para uma ilha deserta ou para o leito de morte. Também sei que nem sequer frequentaria o mesmo café que alguém que achasse dececionante a leitura de “O Estranho Caso do Dr. Jekyll e Mr. Hyde”. A lista dos seus livros preferidos permite que conheçamos cada pessoa. Todas as bibliotecas são autobiografias.
Claro que nem toda a gente pode, ou quer, ler tudo. Apesar de esta época megalomaníaca nos incentivar ao cultivo das totalidades, as escolhas individuais são distintivas, particulares e excêntricas. Na biblioteca universal há pelo menos um livro para cada leitor, mas nem todos os livros servem, e de certeza que nem todos se destinam à totalidade dos leitores. Pessoalmente, prefiro Flaubert a Stendhal, os irmãos Grimm a Andersen, Platão a Aristóteles. Em séculos passados, um estudioso talvez pudesse ter conseguido ler todos os livros escritos na sua época, ou pelo menos saber da sua existência. Agora, apesar de nem sequer ser possível imaginar tão heroica ação, continuamos a insistir, enquanto meros consumidores, em ter acesso a todos os livros publicados. Não há dúvida de que tanto as livrarias online, oferecendo muitos milhões de títulos, como as mais modestas megastores, que ocupam grandes áreas dos centros comerciais suburbanos, são úteis para encontrarmos um certo livro com um fim específico. Contudo, para o leitor que dá espaço ao acaso e que tenha poucas certezas, antes de chegar à última página, sobre o que um bom livro guarda para si, estes abrangentes e excessivamente ordenados armazéns são demasiado generalistas, demasiado diretivos, demasiado parcos em aventuras. Os verdadeiros leitores precisam de deambular por reinos menos ambiciosos e mais pessoais, regiões mais delimitadas onde possam abastecer-se e encontrar palavras que façam a diferença no seu frágil conhecimento do mundo.
Enquanto leitor, sou constituído pelos diferentes Albertos Manguel que povoam os livros que li e de que gostei, personagens que com nomes distintos encarnam versões inesgotáveis de mim mesmo
Quando, em meados dos anos 50, Jorge Luis Borges ficou cego por causa de uma doença herdada do pai, o Governo argentino ofereceu-lhe o cargo de diretor da Biblioteca Nacional. A realidade dá-se ao luxo de criar coincidências e símbolos que até um ficcionista medíocre se recusaria a considerar: Borges foi o terceiro diretor cego da Biblioteca Nacional da Argentina e dos seus milhões de volumes. Para assinalar este acontecimento, escreveu uma elegia, o ‘Poema dos Dons’, pedindo que ninguém diminuísse com lágrimas ou condenasse esta demonstração da “magnífica ironia de Deus”, que lhe tinha dado ao mesmo tempo “os livros e a noite”. E acrescentou: “Deu-mos a mim, que imagino o Paraíso como uma espécie de biblioteca.” Infelizmente, esta convicção íntima tornou-se um slogan imortalizado em T-shirts e tatuagens.
Se o Paraíso é uma biblioteca, como espero realmente que seja, então de certeza que será moldado pelos entusiasmos individuais de cada leitor. Na Biblioteca Universal não há dúvida de que tudo importa, o que prova a generosidade do universo, ou, como diria Borges, da biblioteca, visto que para ele ‘biblioteca’ é somente um outro nome para ‘universo’. Não havendo, todavia, dois leitores que percorram exatamente a mesma biblioteca, cada uma tem de conter na verdade infinitas bibliotecas, assim permitindo que cada leitor tire das estantes os livros importantes para si e ignore os que não lhe dizem nada. Mark Twain, por exemplo, disse que uma boa maneira de começar uma biblioteca seria excluindo os livros de Jane Austen.
Uma biblioteca, antes de o leitor proceder às suas escolhas, é como a sopa de átomos primordial onde surgiu a vida. Lá dentro encontra-se toda a imaginação: todas as ideias, todas as metáforas, todas as histórias, além da identidade individual de cada leitor. Ao escolher a minha biblioteca, selecionando os livros de que mais gosto, aí se constela não só a minha ideia de Paraíso mas também a minha identidade. Ao longo da vida, senti sempre que a minha experiência quotidiana, e até um certo grau de compreensão dessa experiência, chega através da leitura. Na infância, foi ao ler as histórias de “As Mil e Uma Noites” que percebi o que era o amor, foi ao ler policiais que percebi o que era a morte, foi ao ler Stevenson que compreendi o mar, e ao ler Kipling que compreendi a selva, e ao ler Júlio Verne que vislumbrei a possibilidade de aventuras extraordinárias. A experiência concreta chegou muito depois, mas, quando chegou, eu já tinha palavras para a descrever. A leitura sempre foi para mim uma espécie de cartografia prática.
Confio absolutamente na habilidade da leitura para mapear o meu mundo. Sei que numa página algures nas minhas estantes, mesmo diante de mim, está cada uma das questões em que reflito a cada dia, formulada em palavras, talvez há muito tempo, por alguém que desconhece que eu existo agora. A relação entre um livro e um leitor derruba as barreiras do tempo e do espaço, permitindo aquilo a que Francisco de Quevedo, no século XVI, chamou “conversas com os mortos”. Nessas conversas me revelo. Essas conversas dão-me forma.
IMPRESCINDÍVEIS É em livros como “Alice no País das Maravilhas”, os contos de Jorge Luis Borges (na foto), “Dom Quixote” e os poemas de São João da Cruz que mais frequentemente Alberto Manguel procura pistas úteis. Diz ser incapaz de imaginar a vida sem eles
Há mais de meio século, num dos muitos alfarrabistas da Calle Corrientes de Buenos Aires, encontrei uma tradução espanhola do clássico sufi “A Conferência dos Pássaros”. À tarde, depois da escola, passava por estas enormes e desorganizadas livrarias para explorar as pilhas de livros poeirentas, e saía quase sempre com um tesouro. Nesse dia em particular tive sorte, porque descobri um poema do século XII do místico persa Farid ud-Din Attar que me acompanhou durante o resto da vida. Não sabemos quase nada sobre o autor, a não ser que era boticário, que viajou para muitos lugares e que morreu em 1230, com mais de 90 anos. “A Conferência dos Pássaros” conta a história de uma viagem fantástica. Cansados da anarquia que reinava entre eles, os pássaros decidiram procurar um rei, o lendário e poderoso Simurgue, que deixou cair uma pena no meio do império chinês, à laia de aviso. Para chegarem à montanha de Simurgue, os pássaros atravessam sete vales, alguns dos quais têm nomes como Perplexidade e Exaustão. Enfrentam obstáculos diversos, muitos abandonam a demanda, vários morrem. No fim, só trinta chegam ao cume onde vive Simurgue. E aí percebem que Simurgue não existe, ou melhor, que eles próprios são Simurgue e que Simurgue é eles. Uma das leituras possíveis do poema de Attar é a conclusão de que tudo importa, na medida em que todos somos o objetivo final da nossa demanda; outra é que, como todos somos o objetivo final da nossa demanda, apenas importa que façamos parte de algo maior do que nós. A ideia de que somos constituídos por uma multiplicidade de seres acompanha-me desde essa primeira tarde, mas só muito depois percebi que esta leitura do poema de Attar também podia ser uma definição útil daquilo que eu próprio era: um leitor.
Enquanto leitor, sou constituído pelos diferentes Albertos Manguel que povoam os livros que li e de que gostei, personagens que com nomes distintos encarnam versões inesgotáveis de mim mesmo. Sou Pinóquio, que é demasiado cobarde para assumir os seus pequenos delitos, mas corajoso o suficiente para tentar resgatar Gepetto, que está no ventre de uma baleia. Sou Sinbad, que deseja conhecer o mundo para lá do horizonte, cheio de perigos prodigiosos e empolgantes, mas que no fim precisa de ouvintes a quem contar essas aventuras. Sou Job, que faz questão de questionar a autoridade, ainda que claramente me falte a sua proverbial paciência. Sou Xerazade, que sabe que as histórias salvam vidas. Sou Simurgue, que é todos os pássaros, que por sua vez são Simurgue.
Uma das estrelas mais luminosas da constelação de personagens que me definem é Alice. Em casa, tenho várias prateleiras com os livros de Alice e sobre Alice: diferentes versões em várias línguas, ensaios e interpretações de toda a espécie, várias biografias de Lewis Carroll. A minha edição preferida é “Annotated Alice”, de Martin Gardner, porque guia o leitor através do emaranhado de trocadilhos, enigmas lógicos, reflexões filosóficas profundas e sentido de humor letal de Carroll. Alice tem-me acompanhado sempre, e em todos os sítios onde vivi encontrei pessoas do “País das Maravilhas” e “Do Outro Lado do Espelho”, uma e outra vez.
Foi na adolescência que li pela primeira vez os livros de Alice. Percebi então que ali estava uma alma gémea, perdida num mundo de adultos loucos cheios de regras impossíveis de cumprir e que ofereciam conselhos falaciosos, como quando mandam Alice fazer uma vénia “enquanto pensas no que vais dizer; sempre poupamos tempo” [tradução de Margarida Vale de Gato, Relógio D’Água, 2000], ou quando lhe colocam perguntas do género: “Como se diz patati-patatá em francês?” Mais tarde, aos vinte e poucos anos, conheci a cabeça filológica de Alice, que me mostrou os constrangimentos e as debilidades da língua, de modo que, quando eu começava a escrever, a máxima de Humpty Dumpty sobre as palavras — “a questão é quem é que temo poder… é tudo” — ecoava ruidosa e arrogantemente no meu pensamento. Ainda mais tarde, percebi que a história de Alice retratava a sociedade mercantil do meu tempo. Os gestores e banqueiros responsáveis pela crise económica repetem gananciosamente a exclamação do Chapeleiro Louco de que “Já não há lugar!”, apesar de haver espaço de sobra à mesa do chá, e oferecem “marmelada ontem e marmelada amanhã — mas nunca marmelada ‘hoje’”. A Duquesa é citada pelos políticos em toda a parte, quando dizem que temos tanto o direito de pensar como os “porcos de voar” (face ao desemprego galopante, Christine Lagarde, atual presidente do Banco Central Europeu, recomendou aos franceses que “pensassem menos e trabalhassem mais”). Os publicitários, sedentos de criarem mais consumidores acéfalos, defendem, como a Tartaruga Falsa, que todos “entremos na dança”. E por fim, como somos demasiado preguiçosos para refletir sobre o que nos afeta, tendemos a concordar com a exigência da Rainha de Copas: “A sentença primeiro e o veredicto depois!” As personagens com que Alice se cruza são criaturas dos seus sonhos, mas parecem-nos sempre desconfortavelmente próximas.
Costuma-se dizer que os sacerdotes egípcios foram dos primeiros livreiros do mundo, porque ofereciam nos templos às famílias enlutadas exemplares de “O Livro dos Mortos”, depois colocados com o corpo no túmulo para guiarem a alma pelo Reino das Trevas. Ainda hoje, um leitor que partilhe os seus livros desempenha idêntica função sagrada: os livros que recomendamos aos amigos, os livros que partilhamos, podem ser, para os que souberem usá-los, companheiros de jornada mágicos, guias para a nossa viagem pelo reino deste mundo e, se quisermos, pelo mundo que há de vir. Todo o leitor sabe que o livro certo nas mãos certas é um talismã para ultrapassar adversidades.
Também se diz que os leitores são uma espécie em vias de extinção. Nisto não acredito, e talvez a pandemia nos tenha permitido provar que não é verdade. Estou convencido de que os seres humanos podem ser definidos enquanto espécie como animais que leem, e enquanto formos capazes de sobreviver neste planeta continuaremos a ler. Nascemos com o impulso de decifrar o mundo e encaramos tudo em redor como se uma história estivesse a ser contada para nossa edificação. Deste impulso emerge a antiga metáfora do mundo como um livro — um livro que lemos e em que também estamos escritos. E é possível que derive desta metáfora a ideia de que ler é uma atividade alquímica, pois permite-nos transpor as tais supostamente insuperáveis barreiras do tempo e do espaço.
Sem prazer, sem a felicidade de nos perdermos na página, ler não faz sentido. Como quase todas as outras atividades possíveis, se não a realizarmos com alegria, então não vale a pena
Há quase quatro mil anos, nas montanhas de Zagros, na Mesopotâmia, um leitor escreveu a um amigo que lhe enviara uma carta de longe: “O Bulattal trouxe-me notícias tuas e fiquei muito contente. Tive a impressão de que nos tínhamos encontrado e dado um abraço.” As cartas, os poemas e as histórias falam connosco, convocando das sombras, através do ato prodigioso da leitura, personagens e lugares para a nossa presença, para o aqui e agora.
O ato de ler, de termos um livro nas mãos, enroscados numa poltrona ou tranquilamente sentados no autocarro ou num avião, na retrete ou na banheira, de barriga para baixo na relva ou deitados de costas na cama, folheando o livro para a frente e para trás, procurando uma passagem preferida sempre que nos apetecer, tão devagar ou depressa como acharmos melhor, permite que os outros continuem a viver na nossa leitura e que nós continuemos a viver nas palavras dos outros. Só através do ato de ler, e de mais nada neste mundo, é possível esta feliz imortalidade. Contudo, para usufruírem destes momentos de prazer, penso que os leitores devem cumprir certas tarefas essenciais. Distingo seis, mas é provável que haja mais.
1.Acho extraordinário que as histórias das nossas literaturas, tão ciosas de fazerem a crónica da génese, da evolução e do declínio dos escritores e suas escolas, das tendências, modas, movimentos e épocas, em geral não tenham dado o devido valor precisamente à personagem necessária para todo o edifício existir. Os leitores decidem quais os livros que permanecem e quais serão esquecidos; os leitores determinam que livros serão lidos por prazer e quais serão lidos para mera aprendizagem; os leitores classificam os livros de acordo com as suas inclinações e sabedoria; os leitores resgatam dos livros a sua essência e passagens preferidas, combinando-as numa espécie de livro de lugares-comuns universal. Os leitores estipulam, independentemente da vontade do autor, que “As Viagens de Gulliver” é um livro para crianças e não uma feroz sátira política. Os leitores obrigaram a transferir Shakespeare do palco para a página, apesar de o dramaturgo nunca ter achado que valia a pena preservar “Hamlet” ou “Macbeth” em mero texto impresso. E os leitores esqueceram sem remorso centenas ou milhares de pretensos clássicos, agora entregues às investigações das traças. Sem leitores, a literatura é muda.
“Fahrenheit 451”, de Ray Bradbury, foi publicado em 1954. Passa-se no futuro, numa época em que a função dos bombeiros não é apagar fogos mas sim queimar livros. Ainda há pessoas, no entanto, que acham que os livros são necessários, que os livros são essenciais. E, para salvarem estes livros, memorizam-nos. Montag, o herói, perseguido pela polícia do Estado, descobre um grupo destes livros ambulantes na clandestinidade e junta-se a eles. “Gostarias de ler ‘A República’ de Platão um dia, Montag?”, pergunta o líder do grupo. “Claro que sim!”, responde Montag. “‘Eu’ sou ‘A República’ de Platão. Gostarias de ler Marco Aurélio? O Simmons é Marco Aurélio.” “Como estás?”, cumprimentou Simmons. “Olá”, respondeu Montag. E assim Montag conhece Swift, Darwin, Schopenhauer,
Confúcio e Mahatma Ghandi. Para que “um dia, um ano, estes livros possam ser escritos outra vez, as pessoas serão chamadas, uma a uma, para recitarem o que sabem, de modo que os livros possam ser reimpressos, até nova Idade das Trevas, altura em que teremos de repetir o processo. Mas isso é que é maravilhoso nos seres humanos; nunca se sentem desencorajados ou tristes a ponto de não quererem começar de novo, por saberem bem que é importante e vale a pena”. É importante e vale a pena: a primeira tarefa do leitor é salvar a memória da literatura.
2.A segunda tarefa é fazer sentido dessa memória. Os escritores que as nossas estantes juntam de modo aleatório, associados aparentemente segundo o acaso e o tempo, podem parecer à primeira vista curiosamente diferentes nas memórias que trazem para a página — memórias vividas ou imaginadas. O que têm a dizer condiciona, claro, o estilo de cada um, mas a linguagem em que o dizem, por sua vez, influencia o que têm para dizer. Numa língua imaginam-se coisas que não podem ser imaginadas noutra. A própria linguagem nunca é neutra: as tradições políticas e os jogos de poder contribuem para a construção da linguagem tanto quanto a música e a lógica. Por isso, é inútil tentar limitar a imaginação ou as regiões que um escritor pode ou não explorar, porque nada no mundo pertence a uma só pessoa ou a um só grupo. A verdade de um texto reside na leitura desse texto, não nas intenções do autor — um fascista como o excelente romancista Louis-Ferdinand Céline pode escrever textos que permitem leituras antifascistas, tal como um humanista como Pablo Neruda pode escrever poemas que não passam de panfletos e portanto são anti-humanos.
Em 1960, Eugène Ionesco escreveu “O Rinoceronte”, uma peça que (segundo o próprio autor) explorava a sua experiência do nazismo e em que os elementos de toda uma sociedade se transformam lentamente em rinocerontes. Só um homem, Berenger, recusa esta transformação; as suas últimas palavras, gritadas perante as hordas de rinocerontes que se aproximam, são: “Não capitularei!” Pouco antes da independência da Argélia, em 1962, em plena guerra entre argelinos e franceses, um teatro de Argel encenou “O Rinoceronte”. No fim, quando o ator disse “Não capitularei!”, a plateia irrompeu em vivas — de ambos os lados. Os argelinos leram nestas palavras um incentivo para continuarem a lutar; os franceses, um encorajamento para não desistirem. Ambas as fações fizeram sentido da memória de Ionesco, e estou convencido de que as duas leituras foram legítimas.
3.Claro que é possível levar a um extremo absurdo esta amplitude do texto, mas é também tarefa do leitor garantir que isso não acontece. Todos os escritores, sem exceção, partilham uma coisa: com as palavras, traçam paisagens que o leitor tem de identificar. Estas paisagens são todas diferentes, moldadas, como já se disse, por línguas e temas específicos; mas todas têm de ser reinventadas e depois exploradas pelo leitor, que avança por sua conta e risco. A reinvenção e a exploração são a terceira tarefa do leitor. Durante séculos, os leitores em posições de poder decidiram que só certos textos deviam ser lidos e explorados. Certos leitores, com determinados objetivos, estabelecem listas de clássicos e cânones; a estas, outros leitores com objetivos diferentes respondem com novas listas e novos cânones. Na minha opinião, nada de útil tem origem aqui.
Chinua Achebe fez um protesto eloquente contra “O Coração das Trevas”, de Joseph Conrad, lendo-o como um texto racista. O ensaio de Achebe mostra uma argumentação cuidadosa, mas, curiosamente, ignora a possibilidade de uma outra leitura, mais ampla. O horror que Kurtz vê não vem só dos “selvagens pintados” (e nesta descrição fala o imperialista europeu); é um horror que nos toca a todos: o horror do mundo inteiro e da Humanidade que o construiu, tanto a Europa como a África. Neste sentido, “O Coração das Trevas” parece-me uma extraordinária ‘denúncia’ do racismo, em que não há esperança para o sistema político tal como ele se apresenta. E é irrelevante que Conrad pense ou não assim. Uma grande obra de arte supera sempre o seu criador. “Há esperança — mas não para nós”, escreveu Kafka. Podia ser a epígrafe de “O Coração das Trevas”, e é com isso em mente, e apesar disso também, que os leitores têm de exigir a liberdade incondicional da sua própria exploração. Se nós, leitores, não tivermos todas as escolhas, não teremos escolha alguma.
As palavras são essencialmente uma forma de alquimia. Permitem a cada um de nós descobrir, captar, explorar, identificar, transformar, analisar e até habitar o mundo à nossa volta
4.A quarta tarefa do leitor depende da disponibilidade para se entregar. Alguns leitores podem achar que se adaptam melhor à paisagem exuberante de García Márquez ou de Marguerite Yourcenar; outros podem sentir-se mais próximos dos sóbrios quartos e cozinhas de José Rodrigues Miguéis ou de Naguib Mafouz. Uns preferirão os reinos zoológicos de Rudyard Kipling ou das fábulas de Esopo; outros inclinar-se-ão mais para as regiões sombrias de Sadegh Hedayat ou de Charles Dickens. Alguns leitores, os que têm mais sorte, serão cidadãos do mundo. E todos os leitores perceberão que a característica que estes escritores partilham é serem ilusionistas, em maior ou menor medida.
Jorge Luis Borges escreveu um conto intitulado “A Rosa de Paracelso”. Paracelso, o mago e cientista do século XVI, pede a Deus que lhe envie um discípulo. O discípulo chega, ansioso por aprender com o célebre mestre e disponível para lhe entregar tudo o que tem à laia de retribuição — uma mão-cheia de moedas de ouro. O maior desejo do discípulo é aprender o truque de Paracelso de destruir e ressuscitar uma rosa. Paracelso hesita. Diz ao discípulo que nada pode ser realmente destruído, que só a aparência das coisas muda, e que basta uma palavra para fazer com que a rosa regresse à vida. Depois Paracelso lembra ao discípulo que há médicos que o consideram um vigarista. O discípulo, ávido de saber, lança a rosa para as chamas. Esta fica reduzida a cinzas. O discípulo sente vergonha. Recolhe as moedas de ouro, porque deixá-las “seria como dar uma esmola”. Borges termina assim esta história: “Paracelso acompanhou-o até ao fundo das escadas e disse-lhe que seria sempre bem-vindo. Ambos sabiam que não voltariam a ver-se. Paracelso ficou sozinho. Antes de apagar a candeia e se sentar na cadeira gasta, recolheu na palma da mão o pequeno punhado de cinzas e pronunciou baixinho uma só palavra. A rosa apareceu.” A quarta tarefa do leitor é então ser espectador do ilusionista.
5.A quinta tarefa é o entendimento: assimilar o texto com a experiência que tenhamos e as competências que possamos trazer ao ato de leitura. As palavras — os rabiscos que os escritores fizeram para dançarem na página diante do nosso olhar, criando sons na escuridão do nosso espírito — são essencialmente uma forma de alquimia. Surgindo literalmente do ar, as palavras que o escritor regista permitem a cada um de nós, leitores, descobrir, captar, explorar, identificar, transformar, analisar e até habitar o mundo à nossa volta e dentro de nós. E, às vezes, quase compreendê-lo.
O poeta americano Richard Wilbur escreveu um poema ‘Aos Poetas Etruscos’. O etrusco, como sabem, é uma língua que ainda não decifrámos inteiramente. Por isso, temos em nossa posse amostras de uma literatura que não sabemos ler. É isto que acontece à literatura quando os leitores não conseguem desempenhar a sua tarefa: “Desejo-vos sonhos fluentes, tranquilos irmãos que na juventude/ Bebestes com o leite da mãe a língua materna,/ Em cuja pura matriz, unindo mundo e pensamento,/ Vos esforçastes por deixar ficar um ou outro verso/ Como pistas frescas num campo coberto de neve,/ Sem vos ocorrer que tudo poderia derreter e desaparecer.”
6.Ainda outra tarefa, a última e a mais importante: sentir prazer. Sem prazer, sem a felicidade de nos perdermos na página, ler não faz sentido. Como quase todas as outras atividades possíveis, se não a realizarmos com alegria, então não vale a pena. A tarefa do leitor é confiar nesse prazer e segui-lo até onde ele o levar. Os caminhos do prazer são misteriosos, e não é invulgar começarmos num ponto, mas darmos por nós de repente noutro sítio bem diferente. Os snobes até podem compilar boas bibliografias, mas não dão bons leitores. É difícil explicar as razões pelas quais determinado livro nos dá prazer, tal como é difícil explicar as razões por que amamos uma certa pessoa. Podemos indicar motivos, podemos dar exemplos, mas as coisas que realmente importam para nós entrelaçam-se-nos nas entranhas e no coração, como aquelas vinhas que abrem caminho nas rochas gravando nelas o seu percurso. Escrevendo sobre a sua amizade com Étienne de la Boétie, Michel de Montaigne disse que, se alguém lhe perguntasse por que razão amava esse seu amigo, teria uma única resposta: “Porque ele era ele, e porque eu era eu.” Talvez isto baste. A biblioteca dos livros que me dão prazer, porque eles são eles e porque eu sou eu, não é assim tão extensa. Para ser sincero, diria que há 30, talvez 50 livros sem os quais me sentiria espiritualmente, até fisicamente, espoliado. Sabemos que há certos cheiros, sons, paisagens e rostos que nos definem, fantasmas que se erguem na nossa memória como marcos espectrais impossíveis de ignorar, coisas íntimas e queridas que se transformarão em nada quando já não estivermos aqui. Sem dúvida, os livros que amei continuarão a existir nas estantes de outros leitores, mas não serão os mesmos livros que li naquela tarde de verão, num quarto longínquo, em circunstâncias que só recordo porque determinada página não me deixa esquecer. Acho extraordinariamente comovente que os livros sejam criaturas tão fiéis. Em tempos de incerteza, desespero, sofrimento físico ou inquietação espiritual, perseguidos pela ganância e pela idiotice do mundo, por burocratas e outros tolos, sob os céus sombrios que todas as pessoas a dada altura enfrentam em maior ou menor grau, é um milagre que estes companheiros feitos de palavras nos guiem, nos deem força e nos consolem. Há quem tente convencer-nos de que há coisas mais importantes do que a leitura: fortalecer a economia, vencer guerras vãs, descobrir novos planetas, explorar os recursos naturais até se esgotarem, sustentar projetos políticos laboriosos. Mas acabamos por não dar valor aos argumentos apresentados para defender todas estas causas, ainda que por momentos nos pareçam convincentes, porque no íntimo sabemos que há mais do que isso.
Depois de percorrer um árduo caminho até ao abismo do Inferno, de lhe serem mostrados os horrores da punição divina e de falar às almas dos eternamente condenados, Dante, guiado por Virgílio, emerge do terrível lugar de onde Lúcifer não pode sair, e vê a luz da madrugada na praia em torno do Monte Purgatório. É para aí que um barco manobrado por um Anjo traz as almas daqueles que são salvos para se redimirem dos seus pecados durante a ascensão por dolorosos precipícios, até ao cume onde se situa o Jardim do Éden Perdido. A promessa de salvação é confirmada, as almas só precisam de subir para alcançarem a redenção. Vendo o barco desembarcar esta carga bem-aventurada, Dante reconhece entre os recém-chegados um velho amigo, o músico Casella, para quem no passado escreveu letras de canções. Por três vezes Dante tenta dar-lhe um abraço, e três vezes falha, porque Casella é uma sombra e os braços terrenos de Dante não conseguem tocar-lhe. Com amizade, em memória dos saudosos dias que viveram juntos em Florença, Dante pede a Casella para cantar para ele. Casella acede e, erguendo a voz numa bela melodia, canta um poema que Dante compôs para ele nos tempos em que eram ambos jovens e felizes. A canção de Casella tem tanto impacto, que as outras almas deixam de tentar subir a montanha e rodeiam o cantor, para ouvirem: o próprio Virgílio é um espectador embevecido. Neste ponto aparece Catão, o severo guardião do Purgatório, e pergunta em tom zangado o que pensam que fazem. Ali estão eles, naquele que sem dúvida é o momento mais importante de qualquer vida cristã, o preâmbulo da salvação eterna, e, em vez de se apressarem a subir a montanha do Purgatório, ficam parados a ouvir uma canção mortal. Compungidas, as almas dispersam como um bando de pássaros assustados e Virgílio baixa a cabeça de vergonha por não ter cumprido o seu dever enquanto guia.
O que aconteceu? Nada mais do que uma breve interrupção, um exemplo das distrações terrenas que mesmo na reta final do percurso acossam as almas — distrações que é preciso evitar, para se alcançar o cume desejado. Mas esta pausa lírica também é uma demonstração da força da arte humana, da irresistível atração da música e da poesia. De acordo com o rigoroso dogma católico em que Dante integra este livro, temos de ignorar estas tentações e seguir o caminho ordenado. E, contudo, segundo o próprio Dante, segundo o Dante humano, mesmo nos momentos mais tremendos da vida, mesmo quando tudo aquilo por que lutámos está finalmente ao nosso alcance, mesmo quando nos espera a salvação da alma, até nesses momentos, a arte é mais importante. Pela frente, estão a regeneração, a redenção, o Bem Supremo e a promessa de felicidade eterna que lhe está associada. Mas aqui e agora, na praia arenosa, está a ser cantado um poema, um poema parecido com aqueles que já todos lemos, muito longe e há muito tempo, na infância ou na adolescência, ou mais tarde, quando a vida se torna cada vez mais insidiosa e a tristeza é difícil de suportar, e nos lembramos da alegria e também do consolo e do vislumbre de entendimento que as palavras nos trouxeram. Por isso paramos e ouvimos, porque estas coisas importam.
Tradução Madalena Alfaia


3Paulo Santos, António Araújo e 1 outra pessoa
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