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Meu reino por uma salamandra

2/8/2019

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Há pouco tempo concretizei um sonho antigo: o de ter uma salamandra a lenha em casa.
A salamandra é em ferro forjado e tem uma grande janela em vidro, como se fora uma televisão dos anos 50. A lenha e o fogo são um mundo interminável, feito de conhecimento subtil e representam uma preciosa oportunidade de meditação silenciosa.

Encomendei meia tonelada de lenha, que o nosso fornecedor nos entregou, explicando que acompanha todo o processo, sendo ele próprio a fazer o abate e o posterior corte da madeira. Tal serve por dizer que ele ainda conheceu todos aqueles toros, ramos e lascas quando ainda eram árvores vivas e inteiriças. Ele explicou-me as características de cada um dos tipos de madeira, falando-me, quase poeticamente, sobre o aroma, a chama, o calor e as cinzas. No essencial, retive que não se pode querer tudo. Se queremos um delírio flamejante, não teremos tanto tempo de calor; se queremos perene calor, será difícil não arcar com as cinzas abundantes.

Ainda antes de acender a salamandra pela primeira vez, detive-me a simplesmente olhar aquele muro de lenha impecavelmente empilhado e ordenado, no seu improvável e frágil equilíbrio, apreciando a alternância do carvalho com a oliveira. Apercebi-me de que aquela poderia ser uma síntese das duas paisagens-matriz da minha vida: a de Trás-os-Montes e a do Alentejo.

Acender o lume, mesmo com a abundância de tecnologia de hoje, ainda é um desafio e um ritual quase alquímico. Aprecio, em especial, o quanto o fogo respeita as hierarquias, como se fora um exército napoleónico: começa em lascas, pico, pequenos ramos e pinhas, de onde se propaga a ripas, nobres troncos e toros. A final, tudo se mistura em braseiro e acaba por fundir em cinza, já não sendo possível compreender onde começou o fogo. Há uma profunda justeza nesse desfecho total, sem tréguas nem ambiguidades. Poucas coisas são tão limpas como a cinza. E como não adorar a sua textura leve e quase diáfana?

Passo horas a fio a simplesmente fitar o fogo, como se tratasse sempre de uma narrativa única e irrepetível. Aquele fogo pode ser um império, uma relação, uma existência, uma vertigem ou uma morte. Gosto de compreender porque é que alguns pedaços de madeira tardam a arder ou enjeitam mesmo as chamas. Cedo me apercebi de que os cavacos pegam fogo entre si quando faceados pelo lado do golpe. O que significa que se unem pela chama do mesmo modo que o fazem após as enxertias. Enquanto espreito as labaredas, os tons, os cambiantes de luz e de cor, projecto-as na vida, na minha e na dos meus, bem como no mundo que me rodeia. E, de certo modo, tudo me parece um pouco mais natural, límpido e apaziguado. Talvez seja por isso que, desde antanho, o homem fita o fogo, como se fora a primeira vez.
Quando acendo o fogo e me aqueço, eu sinto-me mais rente a tudo e mais despojado de excessos. E reconheço a verdade no verso da canção dos Pink Floyd:
​
“When I come home, cold and tired, It´s good to warm my bones beside the fire”.  


Carlos Miguel Rebocho
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