Nota prévia: Nada contra Mr Smart. Convém é passar o tempo necessário com ele. Não são as coisas em si que são perigosas é o uso que se faz delas. Veja-se o caso do fogo , dá para aquecer e iluminar mas também para destruir.
Vejamos:
Em média, cada pessoa consulta o "smartphone " oitenta vezes por dia( excluem-se chamadas de voz e sms, em princípio) . Ou seja, desses oitenta acessos, presumimos, que dez sejam mesmo essenciais em contexto de trabalho e lazer( ou até mais em casos de comprovada importância , ex, se um médico precisa de ir oitenta vezes ao "smartphone" para salvar uma vida que vá cento e sessenta ...). As setenta restantes são impulsos motivados pela curiosidade e compulsão. Os mais novos que nasceram neste berço digital são mais permeáveis à adição.
A vida privada mistura-se com a pública e o que não é publicitado não existe para as mentes "pavlovianas" que " engolem" tudo o que lhes é apresentado em troca de polegares oponíveis e erectos.A anestesia geral provoca comportamentos minimalistas ,"seguidistas" e acríticos.
Os usuários vivem vidas que não têm na "vida real " transportando para o ecrã a "second life"( interessante como o jogo surgiu antes da "epidemia smartphoniana"...um balão de ensaio...) ou a que vivem necessita de ser validada em praça virtual pública:Declarações inflamadas de amor, elogios desmesurados, sucessos de celofane , sentimentalismos exacerbados ou fotos de tudo e de nada, conquistas do dia-a dia tipo que comem, dormem, viajam , rezam, fodem , coisas normais que nada de extraordinário possuem ...e por ai fora...(Comportamento transversal a todas as classes sociais , tanto as menos cultas como as mais instruídas). Tudo perfeito como a vida fosse só mel e rosas , a perfeita pílula da felicidade que Huxley , sempre sob o efeito de outras substâncias, descreveu nas suas obras.
A vaidade é o mais astuto dos" peixes" , dizia o Padre António Vieira.O banal é um poderoso estímulo ao consumo bem como a imitação e a comparação criando espaço para aguçar instintos e fazer decair os afectos que apenas enchem bocas. O mercado agradece( basta ver que não se escrevem cartas, nem e-mails pessoais , apenas empresas a vender produtos, a vida social reduzida uma vez ao ano pelo lembrete do aniversário insuflado por um léxico cada vez mais minimalista e a "montra de amigos" mantidos em " formol digital" ).
Em 60 anos, a sociedade da culpa deu lugar à sociedade do prazer. As figuras públicas e celebridades são os modelos que as massas anónimas querem seguir, a maior parte iludidas pelo" efeito halo" que a psicologia há muito dissecou. As figuras públicas agradecem e inundadas em solicitações ou alimentam o ego ou seu negócio levando "em cima com tudo".Os seus espaços públicos , por vezes, são" etares" de lixo emocional, que pacientemente administram como quem faz "body ou soul board". Ou seja: querem o melhor de dois mundos, a validação no espaço público e a discrição da vida privada.Duas realidades incompatíveis ou muito difíceis de gerir.
Quem, realmente, gere são os detentores das empresas tecnológicas de Silicon Valley que atolados em dinheiro tornaram o vício o escape mais apetecível segundo relatos de imprensa norte -americana credível. Mas os parentes de Mr Smart também caem no engodo: Incapazes de manter ou alcançar a vida perfeita que outros publicam refugiam-se cada vez mais na droga, álcool e sexo sem arte nem erotismo remetido para esses conceito modernaço de poliamor. São os universos simbólicos da morte a cavalgar!
Figuras públicas e anónimas engolidas por esta voragem, por esta imparável onda não têm tempo e dispersam-se no fluxo de informação, na cadeia de solicitações e na campainha das notificações . Falham compromissos, falham na palavra dada, falham nas relações , mas não falham na hora certa de ligar ao Mr Smart e se não têm rede entram em pânico...Mas como diz Agustina Bessa -Luís, a morte é o mais poderoso agente moral...E ela chegará a todos...
O espelho nunca mente. O outro tornou-se útil na medida do prazer que proporciona e sobretudo em estar sempre de acordo com usuário , o tal parente próximo de Mr. Smart Phone
Não são só os problemas na cervical e os calos nos dedos que importunam os usuários . São problemas civilizacionais de relacionamento e de disfuncionalidade cognitiva e perceptiva que estão a tornar a sociedade doente.
O vazio domina, todos são estranhos em relação aos demais fruto da ilusão da proximidade que a tecnologia promove e essa é a tragédia contemporânea: Uns estão sós à lareira com o Mr Smart e os que não ligam ao Mr Smart sós estão uma vez que não compactuam com sociedades vigilantes, orwelianas e distópicas que colocaram a natureza,a liberdade e a sua verdadeira essência ao serviço de outros numa "preguicite global" que invade cada lar como o monóxido de carbono emanado de uma braseira de uma velha gótica...
Há que arejar ...E ninguém tem de saber disso...