A biblioteca de Londres foi destruída por um bombardeamento em 1940. Uma criança lia entre os destroços. A casa de um ancião foi destruída por um bombardeamento em Aleppo, Síria ( 2011- …). O idoso ouvia um disco entre os escombros de um prédio. As duas imagens sobrepõem-se e sinalizam a guerra como a mais expressiva liturgia da loucura.
As ruínas testemunham a ruptura de uma civilização com o tempo. São uma marca. Não são uma ausência. A Síria será estudada como tem sido analisada a Roma ou a Grécia Antiga. As pedras falam. Os corações ficam mudos face à loucura da razão. Seja a loucura de Lear ou a das personagens inacabadas de Beckett enroladas no novelo sem fim dos seus pensamentos divergentes, compulsivos ou destrutivos.
Ambas as imagens não têm cheiro, som e tactilidade. No entanto, a violência é retalhada pelas palavras e pela melodia. O idoso que ouve, outrora foi a criança que leu. Recorda outros mundos, outras pessoas e outros lugares.
As imagens são assépticas, mas nós não. Levamos fragmentos de um lado para o outro. A memória engana-nos com facilidade. Reconstruímos cada altar interior com as ilusões e as forças que a vida nos injecta nos seus labirintos, avenidas e ruelas.As imagens são hipnóticas, mas nos não. Seduzidos pela imagem , tentamos legendas improváveis, balões inconsequentes ou onomatopeias sensuais para afastar o espectro da morte e do esquecimento.
Rasgamos à força de mil amperes por segundo quadros mentais , itinerários que não queremos percorrer . Goya, Bruegel ou Bosch substituem São Pedro. Somos beatos de pedra. Deus não nos abre a porta . Assumimos todas as virtudes que nos pede e , no entanto, a queda no vício é inevitável. Os irmãos Karamazov de Fyodor Mikhailovich Dostoyevsky não fariam melhor... E sempre o dinheiro, o dinheiro a alimentar a besta e a guerra.
A era cibernética abre caminho à farsa teológica. Ninguém sabe quantas caras têm os seus bezerros de ouro ou com quantas pedras se edifica um templo. Por mais que nos transfiguremos, a imagem no espelho não cessa de nos perseguir e cada vez mais enrugada.
Maquilhamos sentimentos, pensamentos e replicamos comportamentos previamente induzidos sem saber. Expor o ser à totalidade do juízo alheio seria doloroso. A falta e excesso de juízo produzem a mesma matéria sonâmbula. Resta-nos a ruína como lugar de consolo e conforto.
Perdemos a casa, os pais, o homem ou a mulher, os irmãos, o emprego, os cães, os amigos, a casa dos amigos, as casotas …Mas enquanto houver um livro para ler e uma música para ouvir nada nos impede de ser reis arruinados…
Créditos Fotográficos: Joseph Eid /DP